Ato Puro


Em sua acepção mais geral, a palavra "puro" significa o estado de algo que não está misturado. O ato e a potência dividem o ser adequadamente. Conforme comenta São Tomás na Metafísica, livro V, lição IX, edição Parma, t. XX, p. 400, entende-se, de forma geral, por ato puro, o ser que não está misturado com potência.

Sob esse ponto de vista, o ser pode estar em três estados: o primeiro exclui essencialmente toda potencialidade; os outros dois admitem a mistura de potencialidade e ato, mas de duas maneiras: 1. a potencialidade não afeta a essência, que em si mesma só possui atualidade, mas apenas as condições de existência e as propriedades consequentes da essência (este é o segundo estado); 2. a potencialidade entra como parte essencial (este é o terceiro estado). Essas três suposições são as únicas possíveis, pois a mistura de potência e ato só pode afetar diretamente o princípio essencial ou os acidentes, que constituem a única divisão do ser anterior à de potência e ato. Se adicionarmos a concepção de um ser que seria pura potência, assim como o ato puro é puro ato (matéria prima), esgotamos todas as combinações possíveis. (S. Thomas, IV Sent., l. I, dist. XIX, q. II, a. 1; Resp. ad fr. Joan. Vercell. de 108 art., q. XLVIl, Parma, 1864, opusc. 8, p. 157).

Concretizando, encontramos o primeiro desses estados representado por Deus, ato puro, cuja natureza exclui qualquer mistura de potencialidade (ver ATO E POTÊNCIA, col. 335): potência para existir, potência para o ser específico, potência até para operar, pois a onipotência divina é todo ato. (Contra Gent., L. II, c. VII). O segundo estado é representado nos filósofos antigos (Platão, Aristóteles, Avicena) pelas substâncias separadas, pelas puras inteligências, as almas dos céus, os Saturnos; na doutrina católica, pelos anjos. A estes seres cabe a denominação de puros espíritos, mas não de ato puro. a) Eles são puros espíritos porque sua essência, especificamente intelectual, não admite composição de forma ou matéria, alma e corpo, como a essência humana. Eles, portanto, não têm intrinsecamente nenhuma tendência à corrupção, nem consequentemente à geração de outros seres pela decomposição de seus princípios essenciais. Avicebron sustentou o contrário (Avencebrolis seu Ibn Gebirol, Fons vitae, edit. Beumker, Munster, 1895, p. 212, 220, 265, 268, 279, 288). Ele foi refutado ex professo por São Tomás (De subst. separ., c. V, VI, VII, VIII, Parma, 1864, opusc. 14, p. 187b). Eles não são atos puros por duas razões: 1. Sua essência difere de sua existência: eles não possuem o ser, embora sejam aptos a conservá-lo indefinidamente após o terem recebido, sendo incorruptíveis e puras formas subsistentes. (S. Thomas, De subst. sep., c. IX, XVII). 2. Eles são compostos de potência operativa e operação. Sua intelecção não é sua substância como em Deus. E, embora de fato tenham sempre a inteligência de sua substância, permanecem em potência em relação às outras realidades inteligíveis. (S. Thomas, Sum. theol., Iª, q. L, a. 2, 5, in corp. et ad 3; q. LIV, a. 1, 2, 3; Contra gent., L. II, c. LII, LV, etc.; opusc. De subst. separ. in integra).

O terceiro estado, o dos seres essencialmente compostos de matéria e forma, não pode conter puro espírito, muito menos ato puro. Ele, no entanto, contém dois tipos de atos muito diferentes em relação à pureza. O primeiro, a alma do homem, embora essencialmente ordenada a uma matéria, não tem nessa matéria sua condição indispensável de existência e operação. (Ver Alma). É uma forma em si transcendental (transmutada, ὑπερφυής) em relação à potência. Sua independência em relação à matéria forma, assim, o paralelo exato da dupla dependência do anjo (existência e operação) em relação ao ato puro. O segundo tipo de atos, ao contrário, não só está essencialmente unido a uma matéria, mas também encontra nessa matéria, à qual é imanente, a condição de sua existência: assim se comporta a alma sensitiva dos animais em sua matéria viva.

3º Os três estados de pureza em relação ao ato são realizados no universo. São Tomás prova isso: a) para Deus, ato puro, pelas provas que relatamos em outro lugar. (Ver ATO E POTÊNCIA, col. 335, 336. Cf. Sum. theol., Iª, q. III, a. 2; q. IX, a. 1; Contra gent., l. I, c. XVI, § Adhuc quamvis; § Item unumquodque agit; c. XLIII, § Adhuc in rebus; § Item tanto actus; l. II, c. VI, § Adhuc quanto); b) para o anjo, puro espírito, por um argumento a priori tirado da perfeição da ordem do universo, consistindo em que, os seres retornando gradualmente ao seu primeiro princípio, um elo faltaria se as puras inteligências não existissem. (Sum. theol., q. L, a. 1, in corp. et ad 1; Contra gent., l. II, c. XLVI; opusc, De subst. sep., c. I, II, III, IV, XIX); c) para a alma do homem, espírito transcendente e imortal, por um argumento geral tirado da imaterialidade do objeto de sua operação intelectual, o ser universal (Contra gent., l. II, c. XLVII) e por um argumento especial tirado do fato de que, sendo apto a conhecer as naturezas de todos os corpos, ela deve estar despojada de toda matéria (Sum. theol., Iª, q. LXXV, a. 2; De anima, L. III, lect. VII). A pureza de um ato é, de fato, diretamente proporcional ao seu grau de conhecimento, e este inversamente proporcional à sua materialidade (Sum. theol., Iª, q. XIV, a. 1); d) para os graus das formas materiais, pela observação de como, na natureza, as menos materiais entre elas utilizam as mais materiais e as fazem servir aos seus fins, transpondo assim em sua ordem o princípio de Anaxágoras: "tudo está em tudo" (Contra gent., L. III, c. XXII, § In actibus autem).

A. GARDEIL.