Existem dois tipos de adoção: uma, no sentido amplo, que não confere nenhum direito sobre o nome ou a herança do adotante, mas consiste em receber com benevolência uma pessoa estranha e tratá-la mais ou menos como um filho da família; a outra, no sentido estrito, que não consiste apenas em benevolência e consideração, mas confere o direito positivo de portar o nome e reivindicar a herança do adotante.
No sentido estrito, o único usado em teologia, a adoção pode ser definida, segundo São Tomás e outros teólogos, como: Personae extraneae in filium et haeredem gratuita assumptio, ou seja, o ato gratuito pelo qual se toma uma pessoa estranha como filho e herdeiro (Summa Theologiae, III, q. XXIII, a. 1). Esta definição geral se aplica tanto à ordem natural quanto à sobrenatural. Apenas, no primeiro caso, é o homem que adota seu semelhante; no segundo, é o próprio Deus que adota o homem como filho e herdeiro, conferindo-lhe a graça da justificação.
Trata-se aqui desta última adoção, cuja teologia vamos estudar do ponto de vista histórico e doutrinal.
I. História.
1º Até o século VI.
O dogma da adoção sobrenatural é um dos mais claramente e frequentemente ensinados pelas Escrituras. (Veja abaixo o resumo de seus ensinamentos.) Nela se afirma não apenas o fato da adoção, mas, até certo ponto, sua própria natureza e os privilégios que ela implica. Esta clareza e ênfase da revelação parecem ter impressionado especialmente os cristãos dos primeiros séculos, que atribuíam a maior importância à maravilhosa adoção com a qual Deus os havia agraciado. Daí o costume de muitos deles adotarem nomes que lembravam seu nascimento e filiação sobrenatural, como Adeptus, Regeneratus, Renatus, Deigenitus, Theogonius, etc. (Ver Martigny, Dicionário das Antiguidades Cristãs, 2ª ed., Paris, 1877, art. "Nomes dos Cristãos", p. 513).
O dogma da adoção divina era tão difundido e, por assim dizer, tão popular entre os fiéis, que os Padres da Igreja o usavam como base de argumentação para demonstrar outros dogmas, especialmente no contexto das heresias de Ário e Macedônio. (Ver especialmente São Cirilo de Alexandria, Patrologia Graeca, t. LXXV, col. 610, 1086, 1087, 1098, 1122, etc.)
Além disso, os Padres se empenham principalmente em destacar a excelência e sublimidade da adoção sobrenatural. Para eles, era um tema para desenvolvimentos tanto elevados quanto práticos, do qual não deixaram de se valer. (Ver, entre outros: Santo Irineu, Contra Heresias, IV, XXXI, 2, Patrologia Graeca, t. VII, col. 1069; V, XVIII, 2, t. VII, col. 1173; Santo Atanásio, Contra Arianos, orat. II, 59, Patrologia Graeca, t. XXVI, col. 271; São João Crisóstomo, In Matthaeum, homil. II, 2, Patrologia Graeca, t. LVII, col. 26; São Cirilo de Alexandria, especialmente em seus comentários sobre o Evangelho de São João, Patrologia Graeca, t. LXXIII, col. 153-158, 242-244; t. LXXIV, col. 571, 714; e também t. LXXV, col. 526, 568, 610, 906, etc.; Santo Agostinho, In Joannem, tr. XI, Patrologia Latina, t. XXXV, col. 1478; tr. XII, t. XXXV, col. 1484, 1486; São Fulgêncio, Epistolae, XVII, 7, Patrologia Latina, t. LXV, col. 459; Fulberto de Chartres, Patrologia Latina, t. CXLI, col. 199).
Sem dúvida, não encontramos neles uma explicação didática da adoção divina e de suas relações com a graça santificante propriamente dita; mas, com as informações gerais que fornecem, este problema é relativamente fácil de resolver. Certos teólogos contemporâneos, como o Dr. Scheeben, professor do seminário arquidiocesano de Colônia, sustentaram (veja as referências abaixo) que haveria uma profunda divergência de opiniões entre os Padres gregos e latinos a esse respeito.
Os primeiros, segundo Scheeben, explicariam o dogma da adoção pela presença do Espírito Santo, ou da graça incriada, na alma justa; os segundos, pela infusão da graça santificante. O Dr. Scheeben apoia-se sobretudo em São Cirilo de Alexandria, citando vários trechos favoráveis à sua tese, especialmente o comentário ao Evangelho de São João, 1, 13, em Patrologia Graeca, t. LXXIII, col. 158. No entanto, como mostrou muito bem o Pe. Granderath na Zeitschrift für katholische Theologie, Innsbruck, 1884, p. 565-574, se alguns trechos, retirados do contexto, podem parecer favoráveis à tese de Scheeben, o conjunto da doutrina de São Cirilo é contrário a ela. Ver também o cardeal Franzelin, De Deo trino, 3ª ed., Roma, 1881, tese XLIII, p. 633-637.
Além disso, conforme a justa observação do Pe. Granderath, loc. cit., p. 571, nota, poderia-se, sem dúvida, reunir várias passagens isoladas dos Padres gregos e colocá-las em oposição, ao menos aparente, ao ensinamento dos Padres latinos. Essa divergência mais ou menos superficial seria tanto menos surpreendente quanto se trata de um dogma muito elevado, cuja exposição é difícil. Além disso, os Padres não utilizam a terminologia escolástica, que distingue tão bem os diferentes tipos de causas, e não tratam ex professo do dogma da adoção, mas se aplicam sobretudo a provar a divindade do Filho ou do Espírito Santo. Com essas ressalvas, deve-se dizer, de modo geral, junto com o Pe. Granderath, que estudou longamente a questão, que a doutrina dos Padres gregos não difere, no total, da dos Padres latinos. Ver o opúsculo do Dr. Oberdörffer, De inhabitatione Spiritus Sancti in animabus justorum, in-12 de 131 p., Tournai, 1890, onde o autor discute as afirmações de Scheeben e apresenta um resumo muito sucinto do trabalho do Pe. Granderath.
2º Do século VI ao século XIII.
Entre o período patrístico propriamente dito e o século XIII, isto é, de São Gregório Magno e São João Damasceno até Alexandre de Hales e Alberto Magno, não há nada de relevante a notar sobre a doutrina da adoção divina. Ver Mignon, As origens da escolástica e Hugo de São Vítor, 2 vols., Paris, 1895, t. I, c. VI; t. II, c. X. Mesmo Pedro Lombardo, o mestre das Sentenças, mal aborda este tema ao tratar da questão de saber se Cristo é filho adotivo de Deus (Sentenças, l. III, dist. X, Patrologia Latina, t. CXCII, col. 777-778). O único mérito de Pedro Lombardo é ter chamado a atenção dos grandes teólogos do século XIII que comentaram seu livro das Sentenças, especialmente Alberto Magno, São Tomás e São Boaventura.
O primeiro já fornece a síntese e a fórmula escolástica do dogma em questão, IV Sentenças, l. III, dist. X, a. 9-18, Opera, Lyon, 1651, t. XV, p. 113-118. Ver também São Boaventura, IV Sentenças, IIl. I, dist. X, a. 2, q. 1-3, Opera, Lyon, 1658, t. V, p. 115-119. Mas cabe a São Tomás de Aquino ter fixado essas fórmulas com mais precisão e clareza, em seu comentário ao terceiro livro das Sentenças, dist. X, q. II, a. 1-2, e especialmente em sua Suma Teológica, III, q. XXIII, onde ele mostra o que se deve entender por adoção sobrenatural, estudando sucessivamente suas conveniências da parte de Deus e sua eminente superioridade sobre as adoções humanas (a. 1); suas relações com as três pessoas divinas (a. 2); e, finalmente, a semelhança celestial que caracteriza especialmente essa adoção e que é própria da graça e da caridade (a. 3).
Esses três artigos, além disso, não esgotam a questão; mencionam apenas, por exemplo, as relações da adoção divina com a graça santificante. No entanto, contêm pelo menos os principais elementos para a solução de todas as questões que serão posteriormente levantadas pelos teólogos sobre este ponto de doutrina. Cf. I-II, q. CXIV, a. 3.
3º Século XIV e no século XV
No século XIV e no século XV a escola nominalista (Occam, Gabriel Biel, Pedro de Ailly, IV Sentenças, l. I, dist. XVII) se afastou notavelmente da doutrina dos teólogos anteriores, ensinando que a adoção divina, assim como o direito à herança eterna que ela traz, não são o efeito próprio e intrínseco da graça santificante, mas o resultado de uma lei positiva pela qual Deus teria decidido nos aceitar como filhos e herdeiros. Veja essa opinião citada por Suárez, De gratia, l. VII, c. I, n. 6; c. II, n. 1, Opera, Paris, 1892, t. IX, p. 94, 106. De acordo com essa teoria, não haveria, portanto, entre a adoção e a graça propriamente dita, senão um simples vínculo de justaposição, e não um vínculo de dependência intrínseca.
Essa maneira de ver foi rejeitada pelos outros teólogos da época, e até mesmo por certos representantes da escola franciscana, como Pedro Auréolo, que mostrou uma considerável independência tanto em relação a Duns Scot quanto em relação a São Tomás. Auréolo, IV Sentenças, l. I, dist. XVII, q. 1, a. 2, caiu em outro excesso diferente, ao sustentar que a adoção divina era o efeito intrínseco e exclusivo da virtude da caridade. Suárez, loc. cit., c. II, n. 2, p. 106.
4º Século XVI
No século XVI, as importantes definições do Concílio de Trento sobre a justificação e a graça contribuíram, de modo notável, para o desenvolvimento teológico do dogma conexo da adoção. Com efeito, do ponto de vista polêmico, elas decidiam indiretamente, em favor dos tomistas, a controvérsia que os separava dos nominalistas sobre o caráter da adoção divina. Após as declarações da sexta sessão do Concílio, mal se podia ensinar, e de fato não se ensinaria mais, que a adoção é algo puramente extrínseco à alma. Do ponto de vista ontológico, as definições conciliares forneciam aos teólogos novos dados para formular, com mais autoridade, as relações íntimas que unem a adoção e a graça propriamente dita. Finalmente, do ponto de vista lógico, elas atraíam ainda mais a atenção dos teólogos para esse ponto da doutrina e para o verdadeiro lugar que ele deve ocupar em uma exposição científica do dogma. Por isso, a maioria deles, daqui em diante, estudá-lo-á no tratado da Graça habitual ou santificante, considerando com razão a adoção sobrenatural como um dos efeitos formais dessa graça. Ver Suárez, loc. cit.
Por outro lado, os trabalhos preparatórios do Concílio e os projetos de definições que nele foram discutidos revelam com mais detalhes a opinião dos Padres e dos teólogos contemporâneos sobre as relações da graça e da adoção sobrenatural. Ver Acta genuina concilii Tridentini, por Angelo Massarello, seu secretário, ed. A. Theiner, Agram (1874), t. I, p. 205. Cf. Pallavicini, História do Concílio de Trento, l. VIII, c. IV, ed. Migne, Paris, 1844, t. II, p. 217.
5º Os teólogos posteriores ao Concílio de Trento frequentemente invocam suas decisões doutrinais para ensinar com mais vigor e unanimidade que a graça santificante torna o homem filho de Deus por si mesma, e não em virtude de um decreto divino que lhe confere este privilégio. A graça e a adoção, dizem eles, estão unidas por um vínculo orgânico, e não por um vínculo mecânico. Muitos chegam até a afirmar que esse vínculo é tão estreito, tão fundado na essência das coisas, que o próprio Deus não poderia rompê-lo. Outros, contudo, admitem a possibilidade absoluta de uma separação entre os dois. Ver Suárez, loc. cit., c. III, p. 109 sq.
6º Lessius.
No início do século XVII, o jesuíta Lessius emitiu uma opinião nova sobre o princípio constitutivo, ou seja, a causa formal da adoção divina. Veja o Pe. Granderath, Zeitschrift für kathol. Theologie, 1881, p. 284-286, que mostra claramente a novidade desta opinião. Em vez de situar a causa formal de nossa filiação sobrenatural na graça santificante, ele julgou necessário atribuí-la à presença do Espírito Santo na alma justa. De perfectionibus moribusque divinis, l. XII, c. XI, n. 75, Paris, 1881, p. 255-257. Cf. outro opúsculo de Lessius, onde ele sustenta a mesma opinião, De summo bono et aeterna beatitudine, l. II, c. 1, n. 4 e passim, Paris, 1881. Esta doutrina suscitou, como era de se esperar, fortes reclamações, sobretudo porque parecia pouco conforme às decisões do Concílio de Trento sobre a causa formal da justificação e, por conseguinte, da adoção sobrenatural. Lessius se viu obrigado a explicar e retificar um pouco sua doutrina. Ele o fez em um apêndice que foi acrescentado ao seu livro De perfectionibus moribusque divinis, mas que só foi publicado após sua morte, ocorrida em 1623, na edição de Antuérpia, 1626.
Segundo esta explicação, o princípio constitutivo de nossa filiação sobrenatural ainda incluiria o Espírito Santo, mas de maneira indireta, in obliquo, no sentido de que, para ser filho de Deus, seria necessário possuir o Espírito divino, não como um elemento constitutivo e intrínseco da adoção, mas como residindo na alma e simplesmente unido pela graça santificante. Eis suas palavras:
Para que alguém seja filho de Deus, não deve ser o Espírito divino, nem ser por ele informado como uma forma; mas deve ter esse Espírito habitando em si e de algum modo unido a ele pela graça habitual; de tal forma que a razão formal que constitui diretamente a condição de filho adotivo seja ter ou possuir, desse modo, o Espírito de Deus habitando nele, ou ter a graça habitual como uma forma intrínseca que nos une ao Espírito divino. Assim, não há duas formas intrínsecas, mas apenas uma, que, no entanto, inclui uma relação com algo extrínseco, assim como quando alguém é chamado rico pelas riquezas e pela posse das riquezas, não há duas formas intrínsecas, mas apenas uma, que indica uma relação com o que é extrínseco; ambas, no entanto, são essencialmente necessárias para a condição de filho adotivo, conforme agora de fato e de maneira mais coerente com a natureza das coisas é constituída.
Loc. cit., edição de Paris, Append. in fine, p. 603.
7º Séculos XVII e XVIII.
As explicações de Lessius não pareceram suficientes para a maioria dos teólogos. Ele teve alguns partidários, mas principalmente adversários. O principal foi Ripalda, que qualificou a nova opinião com uma severidade totalmente injusta. Eis suas palavras: 'Essa opinião me parece suspeita e indigna de um teólogo tão grande. Aproxima-se muito da opinião dos hereges que afirmam que somos justificados por uma forma extrínseca, condenada com anátema pelo Concílio de Trento.' (De ente supernaturali, disp. ult., sect. X, n. 127, Lyon, 1645, p. 718).
A verdade é que há um abismo entre o erro dos protestantes e o sistema de Lessius. Este, como diz com razão o Pe. Granderath (Zeitschrift für kathol. Theologie, 1881), não está em oposição direta com as definições do Concílio de Trento, mas se encontra apenas contra certas conclusões teológicas seguras, derivadas do concílio. Por outro lado, a doutrina de Lessius foi retomada pelo Pe. Petau em sua obra De theologicis dogmatibus, De Trinitate, onde ele parece ir ainda mais longe que Lessius, ao ensinar que o Espírito Santo é a causa formal adequada de nossa adoção divina.
No entanto, devemos observar que este teólogo não trata ex professo das relações entre a adoção e a graça santificante e que ele fez questão de reservar expressamente a questão da graça para um estudo posterior, que, por fim, permaneceu em estado de projeto (De Trinitate, l. VIII, c. VI, n. 4).
Deve-se concluir com certos teólogos, como Oberdeerffer (De inhabitatione Spiritus Sancti in animabus justorum, Tournai, 1890, p. 73), que sua opinião ainda não era definitiva ou que ele realmente considerava a graça santificante como um dos princípios constitutivos da adoção sobrenatural? Esta segunda hipótese parece mais benevolente do que plausível, se levarmos em conta a doutrina de Petau sobre os justos do Antigo Testamento, que, segundo ele, não tiveram o privilégio da adoção justamente porque o Espírito Santo habitava neles apenas por sua graça e não por sua substância (De Trinitate, l. VIII, c. VII, n. 1-11).
Esta teoria mostra claramente que, no pensamento de Petau, é a presença do Espírito Santo na alma que constituiria a adoção sobrenatural. Entre os demais teólogos dos séculos XVII e XVIII, há muito poucos que seguiram a opinião de Lessius; e até mesmo Thomassin, a quem se atribui comumente esta doutrina, está longe de ser categórico a esse respeito. Ele se expressa de maneira mais ambígua e oratória, o que não permite apreender claramente seu pensamento.
Tudo o que ele afirma é que nossa adoção divina participa um pouco da filiação natural de Cristo, pelas seguintes razões: porque somos revestidos de Cristo; porque recebemos o Espírito Santo em dote; porque temos um alimento divino, a eucaristia; porque a Escritura e os Padres dão à nossa adoção o nome característico de geração, por imitação da de Cristo; e, finalmente, porque ela é principalmente relacionada ao Pai pela Escritura e pela tradição (De Verbi Dei incarnatione, l. VIII, c. IX-X, Paris, 1680, p. 548-552).
8º No século XIX, a opinião de Lessius foi retomada, com modificações muito importantes, pelo Dr. Scheeben, em seu Handbuch der kathol. Dogmatik, traduzido para o francês pelo abade Bélet, na Bibliothèque théologique du XIXº siècle, La Dogmatique, Paris, 1881, vol. III, § 169, p. 618-662. Tanto quanto se pode discernir seu pensamento exato, que não é exposto com clareza e precisão, este teólogo admite que a graça santificante é, sem dúvida, a única causa formal essencial de nossa adoção divina. Mas ele sustenta ao mesmo tempo que o Espírito Santo desempenha um papel considerável, mais importante do que se ensina entre os escolásticos e os latinos em geral, e que chega a revestir alguns dos caracteres da causa formal. Isso porque a inabitação do Espírito Santo faz parte integrante de nossa adoção, e deve ser considerada, de acordo com a doutrina dos Padres gregos, 'como o elemento constitutivo mais importante da filiação divina, no sentido de que ela contém uma participação na substância da natureza divina, uma sociedade, uma unidade, uma coesão substancial com Deus.' (La Dogmatique, trad. Bélet, loc. cit., p. 624).
O sistema de Scheeben esteve longe de conquistar o apoio dos outros teólogos católicos. Um deles, o Pe. Granderath, de Innsbruck, julgou até necessário refutá-lo indiretamente na revista que já citamos, Zeitschrift für katholische Theologie, 1881, p. 283-319. Isso deu origem a uma controvérsia bastante longa entre os dois oponentes. Scheeben defendeu-se na revista Der Katholik, 1883, vol. I, p. 2; vol. II, p. 6; 1884, vol. I, p. 1; vol. II, p. 516; enquanto o Pe. Granderath continuava a refutá-lo com tanta erudição quanto lógica (loc. cit., 1883, p. 491-540, 593-638; 1884, p. 545-579). Essa controvérsia, interessante por mais de um motivo, parece ter tido um resultado muito apreciável: o de melhor definir as relações precisas que unem a graça santificante e a adoção sobrenatural, e de confirmar a opinião que sempre foi a da maioria dos teólogos. Ver, entre outros, o cardeal Franzelin, De Deo trino, 3ª ed., Roma, 1881, p. 636, em nota. O sábio cardeal admite que se pode considerar o Espírito Santo como 'o coroamento de nossa adoção', mas não no sentido de Lessius e de Petau:
Lessius e Petavius consideram que a razão formal própria da filiação adotiva não é a graça santificante, mas a própria substância do Espírito Santo aplicada a nós. Não achamos que isso seja verdadeiro; mas dizemos que o Espírito Santo habitante é o ápice da perfeição, tanto da santidade quanto da adoção, não como causa formal, mas como causa eficiente e como o termo ao qual somos unidos.
Veja também, entre os teólogos mais recentes, o Pe. Christian Pesch, Prelectiones dogmaticae, Friburgo em Brisgóvia, 1892-1899, vol. II, De Deo uno ac trino, sect. V, De missione divinarum personarum, p. 353-307. Sob um ponto de vista diferente, ver Hurter, Theologiae dogmaticae compendium, 7ª ed., Innsbruck, 1891, vol. III, n. 215, p. 164-165, que expõe a opinião de Lessius e de Scheeben com visível simpatia.
II. Doutrina.
Ela pode ser resumida em torno de quatro pontos principais: o fato da adoção sobrenatural; seus caracteres gerais; seu princípio constitutivo; suas consequências.
1. O Fato da Adoção.
A Escritura e a tradição o provam solidamente.
1º Testemunho da Escritura.
1. O Antigo Testamento não fala da adoção sobrenatural, da qual a graça santificante é o princípio na alma justa. Esse silêncio se explica se lembrarmos que os judeus viviam sob a lei do medo, que pressupõe um estado geral de servos ou escravos, e não sob a lei do amor, que convém a um estado superior. Se os justos da antiga lei, considerados individualmente, eram filhos de Deus, não era em virtude da lei mosaica, impotente por si mesma para elevá-los tão alto, mas em virtude da influência antecipada do Novo Testamento, ao qual eles pertenciam radicalmente pela fé e pela caridade. Eles se assemelhavam à criança que não difere do servo enquanto está sob o poder de seus tutores e curadores (Gal., IV, 4-2). Além disso, o recebimento da herança celestial estava subordinado à vinda de Cristo. Os justos do Antigo Testamento estavam em uma situação muito inferior à dos do Novo, no que se refere aos privilégios da adoção sobrenatural. Mas não se deve concluir daí que essa adoção não existia em nenhum grau antes de Jesus Cristo. O Pe. Petau, que sustentou essa opinião (ver acima), apoia-se sobretudo no testemunho de alguns Padres; mas essas passagens podem muito bem ser entendidas, ao menos em sua maioria, no sentido da adoção imperfeita que acabamos de expor. Nada exige uma interpretação diferente; e, ao contrário, a economia geral da graça parece proibí-la. Vários teólogos rejeitam, além disso, a opinião de Petau, baseando-se no texto em que São Paulo nos mostra 'os israelitas, a quem pertencem a adoção dos filhos, e a glória [de Deus], e a aliança' (Rom., IX, 4). Mas este é um argumento pouco sólido. O apóstolo não fala da adoção individual dos judeus pela graça santificante, mas de sua adoção coletiva e social, como povo de Deus. É nesse mesmo sentido que o povo judeu é chamado 'filho de Deus' (Oséias., I, 4) e mesmo 'primogênito de Deus' (Êx., IV, 22-23).
2. Entre os escritores do Novo Testamento, São Paulo é o primeiro e o único que emprega a fórmula 'adoção', υἱοθεσία, no sentido que estudamos. 'Recebestes o espírito de adoção dos filhos, υἱοθεσία, pelo qual clamamos: Abba, Pai' (Rom., VIII, 15; cf. VIII, 28). '[Deus] que nos predestinou para nos tornar seus filhos adotivos' (Ef., I, 5). 'Para nos fazer receber a adoção dos filhos' (Gál., IV, 5). A adoção da qual fala São Paulo estabelece entre Deus e o homem relações muito mais íntimas do que a adoção humana entre as criaturas. De fato, essas relações são caracterizadas por cinco espécies de fórmulas diferentes, mas de todo modo conexas, que colocam claramente a adoção divina em uma categoria intermediária entre a adoção pura e simples e a filiação natural propriamente dita.
a) A Escritura chama os justos de filhos de Deus, crianças de Deus. São numerosos os textos que afirmam essa filiação divina. Sem dúvida, alguns, como (Mateus., V, 9, 45), devem ser entendidos no sentido amplo de uma semelhança geral com Deus; mas a maioria exige uma interpretação mais estrita, devido à sua solenidade e energia. 'Vede, diz São João, que amor o Pai nos mostrou, querendo que tenhamos o título e a realidade de filhos de Deus' (I João., III, 4; cf. Rom., VIII, 14-17, 21; V, 2; Gál., III, 26; IV, 46; João., I, 12).
b) Essa filiação é tanto mais real quanto se baseia em um nascimento, geração ou regeneração divina. 'Ele lhes deu o poder de se tornarem filhos de Deus, àqueles que creem em seu nome, e que não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus' (João., I, 12-13). 'Por um efeito de sua bondade, diz São Tiago, Deus nos gerou pela palavra da verdade' (Tiago., I, 18). Cf. João III, 5; 1 Jo III, 9; V, 9; Tito III, 5; 1Ped I, 3, 23.
c) A nossa qualidade de filhos adotivos corresponde, em Deus, à qualidade de Pai. Esta palavra é repetida mais de quinze vezes no Novo Testamento, com o sentido preciso de paternidade sobrenatural em Deus, que nos considera, então, não mais 'como hóspedes e estrangeiros, mas como fazendo parte de sua família', tanquam domestici Dei (Ef., II, 19). Esta relação com Deus Pai determina outra com Jesus Cristo, de quem nos tornamos irmãos da mesma forma que somos filhos de Deus (Rom., VIII, 29).
d) Não apenas a nossa filiação de graça é obtida por meio de regeneração e renascimento, mas também supõe ou implica uma certa participação da natureza divina, segundo a célebre expressão de São Pedro. 'Deus, por Jesus Cristo, nos comunicou as sublimes e preciosas graças que nos havia prometido, para nos tornar, por essas mesmas graças, participantes da natureza divina' (II Ped., I, 4). Ver GRAÇA SANTIFICANTE e SOBRENATURAL.
e) Finalmente, nos diz São Paulo, 'se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Jesus Cristo' (Rom., VIII, 17; cf. Gal., III, 29; IV, 7; Tit., III, 7; I Ped., III, 22; Tiag., II, 5). Não é apenas sob a forma de uma recompensa que a Escritura nos apresenta o céu, mas também sob a forma de uma herança: 'Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, em sua grande misericórdia, nos regenerou pela ressurreição de Jesus Cristo, para nos dar a viva esperança desta herança em que nada pode se destruir ou se corromper' (I Ped., I, 3-4). Cf. Ef., I, 18; V, 5; Col., III, 24; Heb., I, 14; IX, 15.
Do conjunto desses textos resulta claramente que os justos adquirem, por seu nascimento e filiação sobrenatural, um direito inicial sobre os bens celestes que Deus lhes reserva na vida futura, e assim são constituídos seus herdeiros. A relação que une a adoção divina e a herança eterna é tão estreita que o recebimento desta será precisamente a perfeição final daquela. 'Gememos em nós mesmos, esperando a [definitiva] adoção dos filhos de Deus, a redenção dos nossos corpos' (Rom., VIII, 23). Tobac, O problema da justificação em São Paulo, Louvain, 1908, p. 202-206.
2° Testemunho da tradição.
Apresenta-se sob três formas: as afirmações dos Padres, os documentos litúrgicos e os costumes ou práticas da antiguidade cristã.
1. Padres gregos. — "Se o Verbo se fez carne," diz São Irineu, "e se o Filho do Deus vivo tornou-se filho do homem, é para que o homem, entrando em sociedade com o Verbo e recebendo o privilégio da adoção, se torne filho de Deus." (Cont. her., III, XIX, 1, P. G., t. VII, col. 939). "É por Cristo," diz São Cirilo de Alexandria, "que subimos à dignidade sobrenatural e nos tornamos filhos de Deus, não da mesma maneira que ele, mas por semelhança, pela graça que nos molda à sua imagem." (In Joa., I, 12, l. I, P. G., t. LXXIII, col. 152). Ver também uma bela passagem de São João Crisóstomo, em seu comentário sobre São Mateus. (Homil., II, 2, P. G., t. LVII, col. 26).
2. Padres latinos. — "Por uma condescendência admirável," escreve Santo Agostinho, "o Filho de Deus, seu Único segundo a natureza, tornou-se filho do homem, para que nós, que somos filhos do homem por natureza, nos tornemos filhos de Deus por graça." (De civit. Dei, XXI, 15, P. L., t. XLI, col. 729). São Pedro Crisólogo, meditando sobre a primeira palavra da Oração dominical, "Pai Nosso", não pode deixar de soltar gritos de admiração quando vê, diz ele, "Deus e o homem unidos por um comércio tão estreito, que Deus se torna homem e o homem se torna Deus, o Senhor se torna escravo e o escravo se torna filho." (Serm., LXII, P. L., t. LII, col. 404).
3. Liturgia.
Entre as fórmulas litúrgicas que mencionam ou celebram o dogma da adoção divina, a seguinte merece ser especialmente citada, porque, desde pelo menos o século VI, era usada na Igreja Romana para o batismo dos neófitos na véspera da Páscoa, e ainda está em uso no ofício do Sábado Santo: "Ó Deus, Pai supremo dos fiéis, que multiplicais no universo inteiro os filhos de vossa promessa derramando sobre eles a graça da adoção... lançai um olhar favorável sobre vossa Igreja e multiplicai nela os renascimentos... para que, concebida na santidade, uma raça celestial saia do seio virginal da fonte divina, como uma criatura regenerada e nova." (Offic. sabb. sanct.). Ver Duchesne, Origines du culte chrétien, Paris, 1889, p. 299-300. Cf. Praefat. Dominic., Pentecost.; Collect. Fest. Transfigurat., e Fest. S. Hieronym. AEmil.
4. Costumes e práticas.
Havia na antiguidade cristã vários costumes e práticas que destacam claramente o dogma da adoção sobrenatural. Assim, por exemplo, a denominação de "infantes" aplicada aos recém-batizados, qualquer que fosse sua idade, como se vê nas inscrições cristãs e nas alocuções dos bispos por ocasião do batismo. Ver Martigny, Dictionnaire des antiquités chrétiennes, 2ª ed., Paris, 1877, art. Batême, p. 81. Assim também o costume de tomar no batismo um novo nome correspondente ao novo nascimento do batizado, e que às vezes lembrava de maneira original o dogma do qual era a expressão. Daí os nomes de Adepta, Regeneratus, etc., que sinalizamos anteriormente. Ver BATISMO.
II. CARACTERÍSTICAS DA ADOÇÃO.
Podem-se deduzir a partir de um duplo paralelo, com a filiação de Jesus Cristo de um lado e a adoção humana propriamente dita do outro. Pois, se a filiação sobrenatural do justo é bem inferior à primeira, da qual é uma verdadeira imitação, ela supera de muito a segunda pela excelência de suas prerrogativas.
1º A adoção sobrenatural e a geração do Filho de Deus.
Não insistiremos no primeiro ponto do paralelo, onde se diz que a filiação sobrenatural do justo é bem inferior à filiação natural do Verbo. Esta inferioridade é evidente, pois, das duas filiações, uma repousa diretamente sobre a pessoa mesma do Verbo, e a outra sobre algo finito, a graça santificante. Adicionaremos apenas que a filiação sobrenatural do justo imita e reproduz, em algum grau, a filiação do Cristo. É a doutrina de São Tomás, baseada, além disso, na Escritura. "Per actum adoptionis communicatur similitudo naturalis filialionis hominibus, secundum illud: Quos praescivit conformes fieri imaginis Filii sui" (Rom., VIII, 29). (Sum. theol., III, q. XXIII, a. 1, ad 2ª). É também a doutrina tradicional. Ver, entre outros, São Cirilo de Alexandria, Thesaur., ass. 32, P. G., t. LXXV, col. 526.
2º A adoção sobrenatural e a adoção humana.
Comparada com a adoção puramente humana, a adoção divina goza de prerrogativas maravilhosas e supera muito a adoção humana, sob os três aspectos de origem, natureza e consequências.
1. O homem adota seu semelhante por um motivo de carência, para preencher um vazio familiar; mas Deus adota os justos apenas para lhes comunicar a abundância de Sua vida. Ver São Tomás, Sum. theol., III, q. XXXIII, a. 1, ad 2ª. Além disso, a adoção humana provém de uma escolha puramente exterior, que aproxima as pessoas sem uni-las fisicamente; enquanto a adoção divina se faz por meio da regeneração e é o resultado de um segundo nascimento.
2. As duas adoções diferem profundamente em natureza. A primeira é algo externo à pessoa adotada e não a modifica em nada, visto que o pai não comunica nenhum ser intrínseco ao filho que adota; enquanto a adoção divina, sendo produzida pela graça santificante que eleva o homem acima de sua condição natural, comunica realmente a qualidade de filho com uma participação da natureza divina.
3. As consequências das duas adoções são muito diferentes, do ponto de vista da herança. Não apenas a herança dos filhos de Deus supera as heranças terrestres, assim como a posse de Deus mesmo supera todos os bens criados, mas sua realização ocorre de uma maneira inversa. Uma se dá por meio da sucessão, e supõe a separação do pai e do filho, para que este entre na posse da herança. A outra, ao contrário, se dá por meio de uma união, e uma união indissolúvel, entre Deus e seus eleitos, e é a mesma herança essencial que eles possuem em comum.
Conclusão.
Pode-se concluir deste paralelo que a adoção divina ocupa uma espécie de meio termo entre a geração propriamente dita e a adoção pura e simples. Não é e não pode ser uma geração, no sentido estrito da palavra, pois lhe falta sempre um elemento capital que pertence apenas à geração do Verbo, a saber, a comunicação da substância divina, que se torna parte constitutiva do ser gerado. Mas ela possui algumas analogias com o ato gerador, uma vez que se dá pela infusão de um dom divino que nos comunica o ser sobrenatural, ou seja, uma semelhança e uma participação verdadeira da natureza divina, em outras palavras, um princípio vital de ordem divina que nos permite realizar atos em relação a ela e reivindicar assim o céu como herança. É, portanto, algo mais do que uma adoção pura e simples. E é por isso que a Escritura a chama ora de regeneração ou segunda nascimento, ora de adoção da qual Deus mesmo é ao mesmo tempo o autor e o termo final.
IIi. PRINCÍPIO CONSTITUTIVO DA ADOÇÃO.
Uma vez conhecidos os caracteres gerais da nossa adoção divina, é mais fácil determinar o princípio constitutivo, ou seja, a causa formal. A maioria dos teólogos atribui exclusivamente esse papel à graça santificante, e rejeita tanto a opinião de Lessius quanto a de Scheeben, que foram expostas anteriormente.
1. Provas.
O grande argumento apresentado pelos teólogos contra Lessius e Scheeben é tirado do Concílio de Trento. De fato, a doutrina do concílio pode ser resumida neste raciocínio muito simples: "A causa formal única da justificação é a graça santificante. Ora, segundo o concílio, a causa formal da adoção sobrenatural é a mesma que a da justificação. Portanto..." A maior se prova, entre outros argumentos, pela oposição muito clara que o concílio estabelece entre "a justiça de Deus" considerada em sua fonte imanente e como atributo divino, por um lado, e, por outro lado, essa mesma justiça considerada em sua operação ad extra e no termo onde ela culmina: "Unica formalis causa (justificationIs) est justitia Dei, non qua ipse justus est sed qua nos justos facit." (Sess. VI, c. VII). Portanto, é a graça criada que nos justifica. Ver GRAÇA SANTIFICANTE e JUSTIFICAÇÃO. A menor do argumento se prova tanto pelo próprio conteúdo dos decretos do concílio, pela história de seus trabalhos preparatórios, quanto pelo comentário de seus atos contido no Catecismo oficial que foi editado por ordem do papa Pio V.
1. O conteúdo dos decretos supõe claramente que a causa formal da nossa adoção divina é a mesma que a da justificação. De fato, o concílio define a justificação como "uma translação do estado em que o homem nasce filho do primeiro Adão para o estado de graça e adoção dos filhos de Deus." (Sess. VI, c. III). Ser justificado e tornar-se filho de Deus é, portanto, a mesma coisa; da mesma forma que é a mesma coisa ser justificado e estar constituído em estado de graça. Se fosse diferente, o discurso do concílio seria estranho, em absoluto desacordo com seus hábitos de prudência e clareza, e de natureza a induzir os fiéis ao erro. Ora, não apenas nenhum trecho do texto conciliar autoriza a hipótese de uma distinção entre o princípio da justificação e o da adoção divina, mas ela é claramente rejeitada pelo concílio, uma vez que ele usa indiferença as expressões justi, renati, filii Dei, justificari, renasci, quando fala do homem justificado pela graça. (Sess. VI, c. III, IV, VII). E que não se objeccione, contra o conjunto do argumento, que o concílio não quis definir qual era o princípio constitutivo adequado da adoção sobrenatural, uma vez que não podia condenar uma opinião que ainda não havia sido formulada. Não pretendemos que houve uma definição expressa nesse sentido, mas sim uma definição implícita e equivalente. Tudo leva a crer, sem dúvida, que o concílio quis vislumbrar diretamente o erro de certos protestantes que ensinavam que a justificação inclui, além de um elemento intrínseco à alma, o elemento extrínseco da imputação dos méritos de Cristo. Mas, sejam quais forem os motivos que determinaram a definição do concílio, é necessário admitir que essa definição tem uma relevância indireta muito mais considerável, e que não é mais permitido atribuir nenhuma causa formal à justificação, e consequentemente à adoção divina, fora da graça santificante.
2. A história do concílio o prova ainda mais. De fato, lê-se nos atos autênticos publicados por Theiner que a redação primitiva do sétimo cânone dogmático sobre a justificação era assim concebida:
Se alguém disser que a própria graça de Deus, que é dada na justificação, e que é chamada graça gratificante, que é, ou caridade, ou não sem caridade, pela qual somente os justos são verdadeiramente justos, não é algo que nos pertence ou nos forma, seja anátema. Isto é, de fato, o precioso e magnífico dom de Deus, pelo qual tanto os infantes quanto os adultos, por Cristo Jesus, se tornam nova criação, isto é, divinos, e, como está em Pedro, participantes da natureza divina, são regenerados, vivificados, e, como diz João, não só são chamados filhos de Deus, mas são verdadeiramente.
(Acta genuina, etc., Agram (1874), t. I, p. 205).
Não se poderia dizer de maneira mais clara que a graça santificante é a causa formal da adoção divina. Ora, a propósito deste cânone, o secretário do concílio resume em uma única palavra as observações que foram trocadas entre os membros da assembleia: "Omnia in septimo canone placent." (Acta genuina, p. 209). O que prova, ao menos, que a opinião de Lessius não tinha então nenhum representante nas diversas escolas teológicas e não expressava de maneira alguma o pensamento dos Padres do Concílio de Trento.
3. O catecismo que foi editado, por ordem do papa Pio V, para explicar a doutrina do concílio, ensina também que é a graça que nos faz filhos de Deus: "Pois nossa alma é preenchida pela graça divina, pela qual fomos feitos justos e filhos de Deus, constituídos também herdeiros da salvação." (De baptismo, n. 50). E cuida de dizer ao mesmo tempo que a graça é "uma qualidade divina inerente à alma."
2º Autoridades invocadas pelos adversários. Lessius afirma que as Escrituras são favoráveis ao seu sistema, especialmente Romanos, VIII, 14, 15, 27; Gálatas, IV, 6; Scheeben, por sua vez, invoca também o testemunho dos Padres gregos. No entanto, os teólogos contestam, e com razão, a legitimidade das conclusões que eles tiram dos textos escriturários ou patrísticos. Para a interpretação dos primeiros, veja Cornely, Commentarius in Epist. ad Romanos, Paris, 1896, p. 416; Comment. in Epist. ad Galat., Paris, 1892, p. 528. Para a explicação dos segundos, veja Granderath, Zeitschrift für katholische Theologie, 1884, p. 565-574. Scheeben também está errado ao invocar em sua favor a autoridade de São Tomás. Os textos gerais que ele cita, como Sum. theol., IIIª, q. XXIII, a. 3, e IV Sent., I.III, dist. X, q. II, a. 1, sol. 3, podem ser explicados no sentido da doutrina oposta; e muitos outros passagens, mais precisas e categóricas, mostram que o doutor angélico colocava a causa formal da adoção na graça santificante. Veja especialmente Sum. theol., IIIª, q. XXXII, a. 3, onde ele diz: "Pode-se dizer que o homem é filho de Deus... porque ele é assimilado a Deus pela graça." — Ad 2° dicendum, quod homines, qui spiritualiter formantur a Spiritu Sancto, non possunt dici secundum perfectam rationem filiationis; et ideo dicuntur filii Dei secundum filiationem imperfectam, quae est secundum similitudinem gratiae. Cf. Iª IIª, q. CX, a. 3.
3º Razão teológica.
Os partidários da teoria que criticamos afirmam que sua opinião explica melhor o caráter gerador de nossa filiação sobrenatural e mostra mais a grandeza dos dons de Deus. Talvez; mas a questão é saber se essa explicação pode ser conciliada com as definições da Igreja. Acreditamos ter demonstrado que não. Ela suscita outras graves dificuldades teológicas, como se vê em Granderath, que a discute longamente, Zeitschrift für kath. Theologie, 1883, p. 601 sq., e em Oberdoerffer, loc. cit., p. 115. O espaço restrito de que dispomos não nos permite entrar nessa discussão. Preferimos mostrar, em poucas palavras, como a graça santificante, sendo realmente o princípio de uma nova vida, supõe em sua origem um ato análogo à geração e, em seu termo, um estado que participa da filiação propriamente dita. Assim, de fato, como na ordem natural a filiação e a vida — dois elementos inseparáveis — resultam do ato gerador do pai que comunica sua natureza ao ser que ele gera, assim, na ordem da graça, há comunicação de uma nova vida e ao mesmo tempo filiação, quando a alma recebe de Deus uma participação de sua própria natureza, em outras palavras, a vida sobrenatural. Ora, qual é o princípio radical e formal dessa nova vida, senão a graça santificante? Não é ela que é a raiz fundamental de onde saem as potências sobrenaturais, isto é, as virtudes infusas, que nos permitem realizar atos vitais de ordem divina? É, portanto, ela também que deve ser o princípio constitutivo, a causa formal de nossa filiação divina, assim como sua infusão na alma é análoga ao ato gerador que comunica uma nova vida ao ser gerado. Veja Graça Santificante.
IV. CONSEQUÊNCIAS DA ADOÇÃO.
Há duas principais: a união com as três pessoas divinas e o direito à herança celestial.
1º União com as três pessoas divinas.
Nossa adoção sobrenatural nos estabelece ipso facto, em relação às três pessoas da Santa Trindade, em relações particulares, expressas pela célebre fórmula que representa a alma justa «como filha adotiva do Pai, esposa do Filho e templo do Espírito Santo». É fácil adivinhar a razão dessas diversas apropriações. Convém, de fato, atribuir nossa filiação divina ao Pai «como seu autor», segundo as palavras de São Tomás, pois Ele é, no céu e na terra, o princípio de toda paternidade. Efésios, III, 15. Tornando-se a filha adotiva do Pai celestial, a alma justa é, ao mesmo tempo, em relação ao Filho de Deus, colocada na relação que une entre si os filhos de um mesmo pai; e é por isso que as Escrituras, em diversas passagens, nos chamam de irmãos de Jesus Cristo. Romanos, VIII, 29; Mateus, XXVIII, 10; João, XX, 17. Além disso, como a adoção mais perfeita ocorre por meio de um casamento com o filho da família, convém que nossa filiação sobrenatural nos una a Jesus Cristo pelos laços de esposo e esposa. E aqui também as Escrituras e a tradição se alongam voluntariamente sobre essa consequência de nossa adoção divina. Finalmente, essas diversas relações com o Pai e o Filho sendo estabelecidas, em última análise, pela graça santificante, cuja economia é especialmente atribuída ao Espírito Santo, resulta que a alma justa é também a morada da terceira pessoa, que a santifica por sua ação e presença, e a torna assim ao mesmo tempo digna filha do Pai e digna esposa do Verbo Encarnado. Veja Espírito Santo.
Pode-se perguntar nesta ocasião se a adoção é realizada pela Santa Trindade inteira ou especialmente por alguma das pessoas divinas, por exemplo, o Pai. São Tomás, que se questiona sobre isso, responde que a adoção, sendo uma operação ad extra, é obra comum das três pessoas; mas que pode ser atribuída diferentemente a cada uma delas, por apropriação, ou seja, «ao Pai, como ao seu autor; ao Filho, como ao modelo; ao Espírito Santo, como imprimindo em nós a semelhança desse modelo». Adoptatio, licet sit communis toti Trinitati, appropriatur tamen Patri ut auctori, Filio ut exemplari, Spiritui Sancto ut imprimenti in nobis hujus exemplaris similitudinem. Sum. theol., IIIª, q. XXIII, a. 2, ad 3°. Veja TRINDADE e APROPRIAÇÃO.
2º Direito à herança celestial.
Essa é a segunda consequência de nossa adoção pela graça. São Paulo afirma: "Se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo." Romanos, VIII, 17. O apóstolo acrescenta logo em seguida: "Se, porém, sofremos com ele, para que também com ele sejamos glorificados;" indicando que a obtenção da herança está subordinada a certas condições, que são as boas obras em geral. Daí segue que nosso direito à herança celestial é, sem dúvida, muito real, mas relativo. Os teólogos se perguntaram qual é a natureza precisa do vínculo que une a adoção e a herança divina. Alguns querem que sejamos herdeiros de estrita justiça, de tal forma que Deus agiria injustamente conosco se nos recusasse o céu. Outros atribuem aos justos apenas um direito de alta conveniência em relação à sua herança. Finalmente, uma terceira opinião, a mais comumente aceita, estabelece entre a adoção e a herança divina um vínculo de exigência connatural, análogo ao vínculo que une as propriedades à substância, de tal forma que nossa filiação pela graça sofreria violência se fosse privada do direito inicial que confere. Veja Ripalda, De ente supernaturali, disp. ult., sect. X, Lyon, 1645, p. 721 sq.; Mazzella, De gratia Christi, disp. V, a. 8, Roma, 1880, p. 714-716; Hurter, Theologiae dogmaticae compendium, Innsbruck, 1891, t. III, n.º 215, p. 166.
Além dos autores já citados, veja Theologia Wirceburgensis, in-8°, Paris, 1880, t. VIII, Sobre a graça, disp. VI, c. I, a. 8, n. 3; Katschthaler, Teologia dogmática católica especial, in-8°, Ratisbona, 1880, t. III, Sobre o governo do reino divino restaurado pela graça, parte I, c. III, a. 4, p. 221 e seguintes; Cros, Estudos sobre a ordem natural e sobre a ordem sobrenatural, in-8°, Paris, 1861, 3ª parte, 12ª carta, n. 4, p. 316 e seguintes; Jovene, Sobre a vida deiforme dos homens (litografado), Paris, 1881, tese XI, p. 137 e seguintes; tese XXIV, XXV, p. 631 e seguintes; Corluy, Spicilegium dogmático-bíblico, 2 in-8°, Gante, 1884, t. II, Comentário IV, Sobre a graça habitual, p. 307 e seguintes; de Broglie, Conferências sobre a vida sobrenatural, 3 in-18, Paris, 1889, t. I, Quinta conferência, p. 165 e seguintes; Bellamy, A vida sobrenatural considerada em seu princípio, in-8°, Paris, 1891, c. IV, p. 97 e seguintes; c. VIII, p. 209 e seguintes; 2ª ed., c. IV, p. 74 e seguintes; c. X, p. 192 e seguintes; Ramière, O Coração de Jesus e a divinização do cristão, in-12, Toulouse, 1891, 1ª parte, c. VIII, p. 63 e seguintes; Terrien, A graça e a glória, ou a filiação adotiva dos filhos de Deus estudada em sua realidade, seus princípios, seu aperfeiçoamento e sua coroação final, 2 in-12, Paris, 1897, t. I, passim; Froget, Sobre a habitação do Espírito Santo nas almas justas, in-8°, Paris, 1898, c. VIII, p. 218 e seguintes.
J. BELLAMY.