Ato e Potência


Dedicar-nos-emos às diversas questões que devem ser abordadas aqui em cinco artigos de importância e extensão desiguais:

1° Ato e potência;

2° Ato primeiro e ato segundo;

3° Ato puro;

4° Ato humano;

5° Ato lícito e ato imperativo.

1. ATO E POTÊNCIA. — I. Noção. II. Histórico. III. Aplicação.

I. Noção.

A doutrina de potência e ato é fundamental na teologia escolástica. Ela é emprestada de Aristóteles, que caracteriza a filosofia ontológica. As ideias platônicas, de ordem puramente formal, não explicavam a mudança essencial nas coisas (Kaufmann, Étude de la cause finale, trad. Deiber, Paris, 1898, p. 24); elas eram obtidas por um método não científico, a dialética. Aristóteles buscou aprisionar o ser móvel ele mesmo nos conceitos. Suas categorias, extraídas por abstração e análise dos dados experimentais, são aptas a serem aplicadas às coisas: primeiro progresso. Mas, se representam uma intelectualidade imanente às coisas, elas a representam ainda de maneira estática. Daí, para modelar-se no movimento do universo tanto quanto possível, a necessidade de potência (δύναμις) e ato (ἐνέργεια) e da transição de um ao outro. A doutrina das causas (ver esta palavra) enriquece-se pelo fato mesmo de três causas novas: o fim, a matéria e a causa eficiente. Potência e ato dividem todas e cada uma das categorias.

Ato significa originalmente o movimento de um ser. “Entre todos os atos, o mais conhecido e o mais aparente é o movimento, uma vez que é percebido sensivelmente, e é por isso que recebeu primeiro (primo) o nome de ato, que foi depois adaptado a outras significações.” S. Tomás, IX Metaphys., lect. III, § 2 ibi: “A operação é um ato: é dela que vem o nome de ato.” Ibid. Por analogia, aplicou-se para significar todo estado do ser que é oposto ao estado potencial. Tal estado, ἐνέργεια, sendo perfeito em relação ao estado oposto recebeu o nome de ἐντελέχεια. Estes dois termos aplicados ao ser são sinônimos. Larges, Théorie de l’acte et de la puissance, p. 28, nota; Kaufmann, Étude de la cause finale, trad. Deiber, Paris, 1898, p. 32, nota. A palavra energia, conforme se aplica ao ato segundo (ver ATO PRIMEIRO E ATO SEGUNDO), isto é, à operação, — ou ao ato primeiro, isto é, à perfeição (enteléquia) que determina uma pura potência de ser (existência) ou de ser o que é (forma), se traduzirá por actio ou actus na língua de São Tomás. Cf. Revue thomiste, 1ª ano, n. 6, Gardeil, Nota sobre o emprego da palavra ἐνέργεια em Aristóteles.

II. Histórico.

A influência da doutrina de potência e ato não é perceptível na teologia dos primeiros séculos, mais preocupada em definir os aspectos sobrenaturais da divindade do que seus aspectos filosóficos. Ela é latente, entretanto, sob os conceitos de natureza, hipóstase, pessoa; mas forma então mais o fundo recebido do pensamento filosófico aplicado à teologia do que uma tese especial. — Santo Agostinho não oferece uma teoria precisa, embora, em sua luta contra os maniqueus, tenha aprofundado certos dados (mal, privação do bem; matéria prima, pura potência; perfeição do ser divino) que tocam isso de muito perto. — São João Damasceno não utiliza ex professo a noção de ato e potência. — Boécio a introduz entre os latinos por seu comentário ao De interpretatione, P. L., t. LXIV, col. 282 d. Ele permanece sem uso. O próprio nome de Aristóteles não se encontra em Pedro Lombardo. Guilherme de Paris (1248) é o primeiro a citar a Metafísica de Aristóteles. A. Jourdain, Recherches sur les trad. d’Aristote, Paris, 1843, p. 31. Alberto Magno comenta a obra sobre uma tradução greco-latina, ibid., p. 33, e a usa em seu comentário sobre as Sentenças e sua Suma. São Tomás comentou o nono livro das Metafísicas com uma abundância e clareza que não deixam nada a desejar. Edit. de Pádua, t. XX.

III. PRINCIPAIS APLICAÇÕES TEOLÓGICAS.

Falaremos apenas das que foram feitas por São Tomás de Aquino.

1° Existência de Deus.

As provas da existência de Deus são a posteriori ou pelos efeitos. Os seres com os quais estamos em relação imediata, devidamente analisados, nos aparecem condicionados sob o triplo ponto de vista da produção, da essência e da destinação. O fundo dessa dependência é o estado misturado de potência e ato desses seres (terceira prova de São Tomás, Iª, q. II, a. 3). A consideração da potencialidade na ordem da produção dá lugar às duas primeiras provas que culminam em uma primeira causa eficiente. A potencialidade na ordem das essências ou formas dá lugar à quarta prova, que culmina em uma causa exemplar perfeita. Na ordem da finalidade, chega-se ao ato diretor da ordem do mundo com vista a um fim. Um único princípio é aplicado em todas essas provas, a saber, que à potência corresponde necessariamente um ato anterior (actus prior), o qual, se está misturado de potências (potentia), exige outro, até que se chegue a um ato puro.

2° Natureza de Deus: ato puro.

No XII livro das Metafísicas (edit. Didot, l. XI, c. v; S. Tomás, l. XII, lect. V), Aristóteles havia chegado à existência do ato puro. Ele o considera, primeiro, não como um simples motor, mas como uma atividade essencial, ἐνέργεια ὡς ἔχει. Ele se pergunta, então, como esse motor age sempre se sua substância não é sempre, e conclui a um princípio cuja substância é em ato; isto é, o princípio é o ato puro. Cf. Gardeil, na Revue thomiste, t. I, p. 782, sobre o emprego da palavra ἐνέργεια. — É a conclusão que decorre do ser primeiro para reconhecer a natureza de Deus e dos atributos divinos. Sua metodologia consiste em negar em Deus todas as imperfeições das criaturas, ou seja, tudo o que elas têm de potencial; afirmar nele, em estado eminente (ver esta palavra), todas as perfeições, ou seja, o que elas têm de atualidade. Iª, q. XIII, a. 1. Na questão II da Suma Teológica, São Tomás determina assim pelo caminho da negação:

que Deus não é um corpo (a. 1, 28 ratio);

que não há nele composição de forma e matéria (a. 2, 1ª ratio; cf. ad 3);

que Deus é sua essência (a. 3);

que em Deus a essência e a existência são a mesma coisa (a. 4, 2 ratio) e que seu ser não é genérico ou potencial, mas atualidade perfeita, que é de ratione ejus quod non fiat ei additio (ad 1ª);

que Deus não está em um gênero (a. 5, 1 ratio);

que Deus não tem acidentes (a. 6, 1 ratio);

que Deus é absolutamente simples (a. 7, 4° ratio).

Assim, toda a natureza metafísica de Deus pode ser reconhecida com a ajuda de um único meio de demonstração: o ato puro. E essa noção aparece com a noção de ser primeiro como o elo de ligação entre o mundo e Deus: por um lado, atributo essencial a Deus, chamando, portanto, toda a essência divina à qual é idêntico; por outro lado, realidade postulada pela natureza do mundo que conhecemos diretamente, atributo essencial do mundo, tanto quanto uma causa pode ser essencial ao organismo dinâmico que ela produz e põe em movimento. Cf. Cajetan, In Sum., Iª, q. II, a. 3, § e ut melius intelligatur.

A noção de ato puro se encerra na determinação dos outros atributos metafísicos: a perfeição divina, q. IV, a. 1, in corp. et ad 3ª; o que há de especial em sua bondade, q. VI, a. 3; sua infinitude, q. VII, a. 1; sua imutabilidade, q. IX, a. 1, 1 ratio, et a. 2; sua unidade, q. XI, a. 4; sua inteligibilidade, q. XII, a. 1A ciência é atribuída a Deus em virtude deste princípio que o conhecimento está em razão direta da imaterialidade, q. XIV, a. 1. A identidade da inteligência e da substância divina é estabelecida pela impossibilidade para a substância divina de se comportar em relação ao ato de inteligência, como uma potência em relação a um ato, q. XIV, a. 4. — A noção de ato puro serve para estabelecer a verdadeira natureza — do conhecimento que Deus tem das coisas que não são ele, q. XIV, a. 6, in corp. et ad 2ª; a. 8, ad 1ª e 3ª; — da potência divina, q. XXV, a. 1, e, de maneira geral, entra mais ou menos diretamente na determinação do modo segundo o qual os atributos morais como os atributos metafísicos convêm a Deus. Também das cinco provas da existência de Deus.

3° Natureza de Deus. Trindade.

A noção de ato serve para estabelecer a noção de processão em Deus, Iª, q. XXVIII, a. 1, in corp. et ad 4ª, e de geração, a. 2, in corp. et ad 1ª.

4° Natureza dos anjos.

Os anjos são compostos de potência e ato na medida em que sua natureza não é ato puro, q. L, a. 2, ad 3ª. Não sendo ato puro, eles não são sua ação, q. LIV, a. 1, 2. Sua potência intelectual difere de sua essência, a. 3, in corp. et ad 2ª. Ela não está sempre em ato em relação a certos objetos, q. LVIII, a. 1.

5° Criação.

A matéria prima deve ser criada diretamente por Deus devido à sua absoluta potencialidade, q. XLIV, a. 2, ad 2ª. A criação requer absolutamente Deus, porque o nada é como o limite da contrariedade da potência ao ato, q. XLV, a. 5, ad 3ª.

6° Natureza do homem.

A subsistência da alma humana se conclui da potência que ela tem de conhecer as naturezas de todos os corpos, q. LXXV, a. 1; a doutrina do composto humano é um caso particular da aplicação da doutrina da potência ao ato nos seres corpóreos, q. LXXVI, a. 4. O relacionamento essencial de potência e ato torna necessária a existência no homem de faculdades, q. LXXVII; essa doutrina domina todo o estudo das faculdades, q. LXXIX a LXXXIX.

7° Encarnação.

A doutrina da pessoa ou da subsistência concebida como um ato distinto da natureza nas criaturas, rege a explicação da união hipostática. IIIª, q. II, a. 3, 6, ad 3ª. A atualidade do princípio de ação que corresponde à pessoa explica, em certa medida, a assunção pela pessoa divina da natureza humana, q. III. A potência passiva natural da natureza humana não tem nada a ver com isso, q. IV.

8° Sacramentos.

Matéria e forma são uma aplicação analógica de ato e potência, q. LX, a. 7. — Caráter sacramental: Explica-se por uma potência espiritual passiva ou ativa em relação às coisas divinas. IIIª, q. LXIII. — Eucarística: A mudança do pão no corpo de Cristo é explicada pela operação de Deus Ato infinito, cuja ação atinge o ser mesmo, q. LXXV, a. 4, in corp. et ad 3ª.

Veja IX Livro das Metafísicas, comentado por São Tomás; do mesmo, In Physicam (IIª, IIIª, VIIª, VIIIª livros); De anima, IIIª livro; Summa Theologica, loc. cit. Pode-se consultar com proveito se se conhece bem o sistema de São Tomás: Tabula aurea Petri a Bergamo, O. P., em Opera Omnia D. Thomae Aquin., Parma, Fiaccadori, t. XXV, e Thomae Lexicon, Paderborn, 1895, nos termos: Actus, Actio; Caetano, Comentário sobre o De ente et essentia de São Tomás; todos os comentaristas de São Tomás, locis citatis; Fouillée, La philosophie de Platon, Paris, 1889; Kauffmann, Etude de la cause finale dans Aristote, tradução por P. Deiber, O. P., Paris, 1898; Franz Brentano, Von der mannifachen Bedeutung des Seienden nach Aristoteles, Fribourg-en-Brisgau, 1862; Farges, Acte et puissance; Matière et forme, Paris; P. de Regnon, S. J., Métaphysique des causes, Paris, 1886; Baetimker, Das Problem der Materie in der griechischen Philosophie, Münster, 1890; Domet de Vorges, L’acte et la puissance, nos Annales de phil. chrét., agosto 1886; Boutroux, Grande Encyclopédie, termo: Aristote; Baudin, L’acte et la puissance dans Aristote, na Revue thomiste, 1899.

A. GARDEIL.