I. Teoria de origem alemã.
II. Teoria de M. Lea. Examinaremos mais particularmente duas teorias, que foram elaboradas: a primeira na Alemanha e a segunda no mundo anglo-saxão, das quais as outras se aproximam mais ou menos.
I. TEORIA DE ORIGEM ALEMÃ.
I. EXPOSIÇÃO.
Essa teoria baseia-se em uma concepção do cristianismo primitivo que pode ser resumida assim: No princípio, a comunidade cristã não tinha outro guia além do Espírito Santo, que manifestava a vontade divina por meio dos carismas. Os apóstolos, os doutores, os profetas, em suma, os espirituais, eram os órgãos do Espírito divino; por conseguinte, eram os líderes da Igreja. Era entre eles que a comunidade escolhia servos ou oficiais, determinava suas funções e os elevava ou depunha conforme sua vontade. Em resumo, a organização da Igreja era primariamente carismática. Somente com o tempo essa organização foi substituída pela organização hierárquica, composta por bispos, presbíteros e diáconos. Essa transformação atingiu a doutrina evangélica em sua essência. A penitência praticada pelos primeiros cristãos foi igualmente afetada. No início, a satisfação imposta aos pecadores pela comunidade era puramente disciplinar e não tinha caráter sacramental. Nenhum cristão reivindicava o poder de absolver. A Deus somente estava reservado o direito de perdoar os pecados. Porém, antes de admitir novamente à comunhão os pecadores que havia rejeitado, a Igreja esperava que a vontade do Deus de misericórdia fosse manifestada. E de onde poderia vir essa revelação? Por meio de quem? Pelos eleitos que o Espírito Santo iluminava com sua luz. Os apóstolos, os profetas, os doutores e, mais tarde, os mártires, tornaram-se os intérpretes, os órgãos do julgamento de Deus. A eles somente pertencia o poder de perdoar os pecados, ou melhor, de declarar que Deus os havia perdoado. Os bispos e os presbíteros, cuja existência é constatada desde essa época, só tinham o mesmo poder se fossem investidos do Espírito Santo e iluminados por essa luz especial que era o apanágio comum de todos os espirituais. Portanto, ainda era a organização carismática que predominava na administração da penitência; a organização hierárquica a suplantou apenas mais tarde. Essa é a teoria; será ela autorizada pelos textos?
II. DISCUSSÃO.
1° O poder de absolver pertenceu aos pneumáticos?
Vimos (Absolvição no Tempo dos Padres da Igreja, col. 154) que a direção da penitência e o poder das chaves estavam nas mãos dos bispos e presbíteros, não apenas no século III, mas desde o século I; testemunham isso São Inácio, o Pastor de Hermas, São Irineu, os Cânones de Hipólito, Clemente de Alexandria, etc. É verdade que os bispos confiscaram para si o poder de absolver, primitivamente confiado a todos os pneumáticos, a todos os espirituais? É verdade que os espirituais algum dia exerceram esse poder? Podemos desafiar os protestantes a citar um único texto que estabeleça que os espirituais, enquanto espirituais, exerceram ou reivindicaram esse poder nos tempos apostólicos ou mesmo no século II. Não temos dificuldade em reconhecer que, em relação à organização hierárquica, existia nas primeiras comunidades cristãs uma organização que pode ser chamada de carismática. São Paulo a descreve várias vezes, com uma complacência marcante. Romanos, XII, 4-8; I Coríntios, XII, 1-14, 28-31; XIV inteiro; Efésios, IV, 7, 11-12. Apóstolos, evangelistas, doutores, profetas, curandeiros, glossolalistas, intérpretes, têm uma missão especial na Igreja; todos devem contribuir para a edificação do corpo de Cristo; é para isso que receberam, cada um segundo sua medida, um dom do Espírito.
Na concepção de Paulo, os profetas e os intérpretes estão na vanguarda de todos esses espirituais. Mas nada indica que ele tenha querido designar, com isso, os verdadeiros líderes da Igreja, os detentores da autoridade, muito menos que tenha pretendido atribuir-lhes o poder de absolver. Sem dúvida, no texto evangélico: accipite Spiritum Sanctum, etc., João, XX, 22, o dom do Espírito Santo e o poder de absolver estão estreitamente unidos. Este dom do Espírito é estritamente uma investidura. Mas é permitido concluir que todo dom do Espírito Santo conferiu uma investidura semelhante? Se fosse assim, todos os batizados, confirmados pelo Espírito, possuiriam o poder de absolver. Os apóstolos, doutores e profetas não teriam sido mais privilegiados que os outros, o que é contrário à teoria. Ademais, a Escritura mostra que o Espírito confere seus dons como quer, e que cada um desses dons tem sua virtude especial. Esse Espírito que o Salvador comunica aos seus apóstolos em vista do poder de perdoar e reter os pecados, é também de uma ordem particular. Não se segue, portanto, que os carismas que faziam os doutores e os profetas, tenham investido estes últimos do poder de absolver.
Nos é apresentado o texto de São Paulo, I Timóteo, IV, 14, cuja interpretação não é sem dificuldade. Há ali, de fato, uma ligação, real ou aparente, entre a profecia e a dignidade presbiteral: Noli negligere gratiam quae in te est, quae data est tibi per prophetiam, cum impositione manuum presbyterii. Mas por que lembrar este texto a propósito do poder das chaves? Se Timóteo exercia esse poder, nada nos autoriza a pensar que era em virtude do carisma profético, em vez de sua autoridade presbiteral. Não há obra na antiguidade que nos dê uma ideia mais elevada da organização carismática do que a Didaquê. Os doutores e os profetas ocupam nela um lugar à parte; são chamados os "arquipresbíteros" da comunidade, ἄρχιπρέσβεις. Mas é notável que, diante deles, se ergue a hierarquia dos bispos e diáconos, que recebem sua autoridade pela imposição das mãos. Didaquê, cap. XIII, XIV. As duas organizações, portanto, coexistem. Quanto ao poder de absolver, não é mencionado em nenhuma parte da obra, nem para os doutores e profetas, nem para os bispos.
É necessário descer até Tertuliano para encontrar uma base para a teoria carismática do poder de ligar e desligar. E ainda assim, os termos nos quais Tertuliano expressa sua opinião não são decisivos. Tornando-se montanista, ele se esforça para demonstrar que uma categoria de pecados são imperdoáveis. De Pudicitia, cap. I, II, VII, XI, etc., P. L., t. II, col. 981 e seguintes. Ele distorce as parábolas da ovelha perdida, da dracma perdida, do filho pródigo, que ele havia interpretado anteriormente no sentido católico, para adaptá-las à sua nova opinião. Compare De Paenitentia, cap. VIII e De Pudicitia, cap. VII, VIII. O texto de São Mateus sobre o poder das chaves confiado a São Pedro o detém e o embaraça. Ele admite, a contragosto, que os apóstolos puderam perdoar os pecados cujo perdão era reservado a Deus, mas somente em virtude de um poder especial atribuído à pessoa e não à função, non ex disciplina, sed ex potestate. (Sobre o sentido das palavras disciplina e potestas, ver o contexto, De Pudicitia, cap. XXI). Os apóstolos operaram milagres como Cristo, e como Ele, puderam perdoar pecados; os profetas tiveram o mesmo poder. "Para perdoar pecados", diz ele ao papa, "é necessário, portanto, que você seja profeta ou apóstolo." Ibid. Certamente a Igreja tem o poder de perdoar os pecados. Mas qual Igreja? "A Igreja do Espírito e dos espirituais, não a Igreja que se autoriza pelo número dos bispos", Ecclesia Spiritus per spiritalem hominem, non Ecclesia numerus episcoporum. Ibid. Apesar disso, os pecados graves não serão perdoados. Mais ainda, o Espírito proíbe até mesmo aos espirituais de exercer o poder de absolver, para que os pecadores não caiam novamente. Ibid. Assim, por ódio à Igreja Católica e ao papa, que usavam do poder das chaves, Tertuliano nega até mesmo àqueles que representavam, segundo ele, a verdadeira Igreja, aos espirituais, aos profetas e aos apóstolos, o direito de exercer esse poder. Pelo seu próprio reconhecimento, ao menos, os pneumáticos ou espirituais não aplicavam tal poder.
Chegamos assim ao século III sem encontrar um único documento que nos mostre o que se chama organização carismática usando o poder de absolver.
2º Os mártires possuíam o poder de absolver?
Os mártires seriam mais privilegiados que os doutores e os profetas? Segundo Preuschen, seria fácil encontrar em Tertuliano e Eusébio a prova de que os mártires perdoavam os pecados dos lapsi. Em virtude de seus méritos extraordinários e do Espírito que descia neles de maneira particular, eles se tornavam os instrumentos das sentenças divinas e podiam declarar que os penitentes estavam livres de suas culpas. Note-se que essa teoria contradiz a opinião comum, segundo a qual os mártires se limitavam a interceder pelos lapsi e a pedir sua reintegração na Igreja. Vejamos os textos:
a) Textos de Eusébio.
Primeiro, é citada a famosa carta que contém o relato da perseguição de Lyon sob Marco Aurélio. Quer-se que a atitude dos mártires prove que estamos diante de uma efusão de carismas como nos tempos áureos da Igreja apostólica. Mas ainda faltaria provar que, em virtude desses carismas divinos, os mártires possuíam o poder de absolver, o que a carta não menciona. De fato, interpreta-se nesse sentido o trecho onde os lioneses celebram a caridade dos mártires: "Durante sua vida, eles defendiam a todos; não acusavam ninguém; procuravam quebrar as correntes de todos, não prendiam ninguém. À exemplo do mártir Estevão, oravam por aqueles que os entregavam ao suplício, dizendo: Senhor, não lhes imputes este pecado... Muito mais oravam por seus irmãos... Não se vangloriavam da queda de seus irmãos mais fracos, mas compartilhavam caridosamente com aqueles que estavam menos bem providos os dons que a graça divina lhes havia largamente concedido. Tocados de piedade, como uma mãe indulgente, derramavam abundantes lágrimas por sua salvação diante de Deus Pai, pediam que Deus lhes restituísse a vida, e Deus lhes devolvia a vida, e comunicavam a vida aos seus próximos." Eusébio, História Eclesiástica, livro V, cap. II, P. G., tomo XX, col. 436. Certamente, aqui se manifesta a caridade cristã em toda a sua beleza. Mas Eusébio nos diz expressamente que seu único objetivo era dar isso como exemplo para a posteridade. Do poder de absolver, não há qualquer menção. O conjunto do texto não permite ver na oração dos mártires outra coisa senão um ato de intercessão.
Em outra passagem, Eusébio coloca frente a frente um falso mártir e uma profetisa montanista, um ladrão e uma avarenta. Apolônio lhes diz ironicamente: Qual deles perdoará o pecado do outro? A profetisa perdoará ao mártir seus crimes? Ou o mártir perdoará à profetisa sua avareza? História Eclesiástica, livro V, cap. XVIII, P. G., tomo XX, col. 477. A piada se entende muito bem na hipótese de que os montanistas atribuíssem aos mártires e aos profetas o poder de absolver. Mas não é certo que esse seja o sentido da interpelação de Apolônio. Em todo caso, tratar-se-ia de uma seita que a Igreja Católica, já bem constituída no Oriente e no Ocidente, repudiava com razão. Não se pode dizer que os montanistas foram os únicos e verdadeiros guardiões da doutrina apostólica em matéria de absolvição.
O caso dos mártires de Alexandria, relatado por Eusébio, não justifica mais a opinião de Preuschen.
O bispo Denys expõe ao seu colega Fábio de Antioquia a dificuldade em que alguns mártires o colocaram, ao admitir por sua própria autoridade à comunhão eucarística vários lapsi durante sua vida. Deve ele ratificar sua sentença ou considerá-la como nula? Eusébio, História Eclesiástica, livro VI, cap. XLII, P. G., tomo XX, col. 613-616.
A questão supõe e compreende uma dupla questão: a questão de fato e a questão de direito. O fato da admissão dos lapsi à comunhão pelos mártires estando estabelecido, qual era seu valor no direito eclesiástico? É visível que o bispo não se considera vinculado pela decisão que os mártires tomaram. Não é menos certo que os mártires seguiram um costume de certa forma aceito na Igreja de Alexandria, caso contrário teriam suscitado a indignação geral do clero, o que o bispo não deixa entender.
Assim, pode-se conceber a prática dessa Igreja. Os mártires, num espírito de caridade e misericórdia, recebiam primeiro os lapsi em seu círculo; esse círculo, expandindo-se, acabava por compreender uma parte considerável dos fiéis. Mas essa reintegração de fato na comunidade cristã não tinha valor jurídico, enquanto o bispo não a ratificasse e não a selasse com uma reconciliação autêntica e solene. O julgamento do bispo vinha, na verdade, depois do dos mártires; mas somente ele tinha a força de uma sentença eclesiástica, canônica. O relacionamento dos mártires ou dos fiéis com os lapsi arrependidos era um ato puramente privado, que só adquiria o caráter de um vínculo real e oficial a partir do momento em que o bispo o consagrava com sua autoridade. Provavelmente era raro que o bispo anulasse o julgamento dos mártires, especialmente quando a comunidade mostrava por sua conduta que o apoiava plenamente. Mas, ainda assim, era seu direito estrito. E se Denys de Alexandria pergunta o que deve fazer em tal caso, é porque sem dúvida não havia, nesse ponto, uma tradição bem estabelecida em sua Igreja, ou porque, durante o período de paz religiosa que durava há quase quarenta anos, essa tradição havia se perdido.
b) Textos de Tertuliano.
Segundo Tertuliano, a Igreja dos psíquicos (entenda-se a Igreja romana) autorizava, em sua época, os mártires, assim como os bispos, a remeter os pecados. Esta é a tese que ele defende no último capítulo de seu tratado De Pudicitia. "E tu também, em teus mártires, derramas esse poder," diz ele em uma apostrófe ao papa Calisto. Não precisamos seguir aqui o desenvolvimento de sua tese. O que importa saber é a medida em que a Igreja de Roma autorizava os mártires a remeter os pecados. Admitindo que os mártires tenham intervido, de alguma forma que ainda precisa ser determinada, nas comunidades cristãs para a reconciliação dos grandes pecadores, dos adúlteros assim como dos lapsi, deve-se acreditar que Tertuliano não distorceu o caráter dessa intervenção? Deve-se acreditar que a conduta de Roma era toda diferente daquela de Alexandria, ou mesmo de Cartago? Já vimos como se procedia em Alexandria. O que acontece em Cartago durante o tempo de São Cipriano nos mostrará mais uma vez que a participação dos mártires na reconciliação dos pecadores é completamente distinta da dos bispos e não pode ser confundida com o poder das chaves.
c) Textos de São Cipriano.
Sabe-se que, durante as perseguições, os lapsi tinham, em Cartago, o costume de se dirigir aos mártires para obter deles uma carta de recomendação que facilitava seu retorno à Igreja. Esta carta é conhecida como libellus pacis; não continha de forma alguma o perdão autêntico do pecado de idolatria; era pura e simplesmente um ato de intercessão, pedindo para o culpado a indulgência da Igreja, ou seja, da comunidade toda, mas mais particularmente do bispo. São Cipriano considerava que ninguém podia liquidar, se posso me expressar assim, a carta dos mártires, antes que o bispo se pronunciasse.
É o bispo quem decidia se era necessário admitir à paz, à comunhão, os lapsi munidos de um libellus pacis, os libellatici, como eram chamados. Na prática, São Cipriano não se restringiu a uma conduta uniforme. Durante a perseguição, por exemplo, ele adiava a reconciliação dos lapsi até a hora de sua morte. Em outros tempos, foi mais misericordioso. Mas nunca permitiu que os mártires, ou a comunidade, ou mesmo seu clero, usurpassem sua autoridade ou invadissem seus direitos episcopais. Alguns sacerdotes, que ousaram, na sua ausência, admitir à comunhão eclesiástica, sem esperar sua decisão, lapsi munidos de um libellus pacis, ele repreendeu severamente por sua impertinência, e os culpados tiveram que desmentir o que haviam feito. Cf. S. Cipriano, Epíst., XV, XVI, XXI, XXII, XXIV, XXVII, LV, LVI, etc., P. L., t. IV.
CONCLUSÃO.
É, portanto, impossível provar por textos que os mártires tenham exercido propriamente o poder de absolver, ou que tenham reivindicado estritamente o direito de reconciliar os pecadores, lapsi ou outros. Os doutores, os profetas, em uma palavra, os espirituais, também não possuíram, sob qualquer forma que fosse, o poder das chaves. A tese dos protestantes alemães, Sohm e Preuschen, que expusemos e refutamos, é, portanto, historicamente insustentável.
Ref: Harnack, Lehrbuch der Dogmengeschichte, Friburgo em Brisgó, 1888, parte I, p. II, c. III, t. I, p. 367 sq.; Sohm, Kirchenrecht, Leipzig, 1892; Preuschen, Tertullians Schriften De poenitentia und De pudicitia, mit Rücksicht auf die Bußdisziplin, Giessen, 1890; Miller, Die Bussinstitution in Karthago unter Cyprian, na Zeitschrift für Kirchengeschichte, 1895, p. 1 sq., 187 sq.; Götz, Die Busslehre Cyprians, Königsberg, 1895; Studien zur Geschichte des Bussakraments, na Zeitschrift für Kirchengeschichte, 1895, p. 321 sq.; 1896, p. 541 sq.; Schanz, Die Absolutionsgewalt in der alten Kirche, na Theologische Quartalschrift, 1897, p. 27 sq.
II. TEORIA DE M. LEA.
1. EXPOSIÇÃO
A segunda teoria que devemos estudar tem como autor um escritor americano bem conhecido por seus estudos de história religiosa, o Sr. Henry Charles Lea. Ele a expõe e sustenta em A History of the Sacramental Confession, 3 vols., Londres, 1806. Ela se resume nas seguintes afirmações ou conclusões:
a) As comunidades cristãs primitivas não conheceram o poder sacerdotal de absolver: nenhum texto dos Pais dos primeiros séculos o menciona.
b) A reconciliação que marcava o fim dos exercícios penitenciais não tinha, na época recolhida, efeito senão no foro externo, e não tocava de forma alguma a consciência do pecador que só Deus podia purificar: a prova disso é que os diáconos às vezes eram autorizados a reconciliar os penitentes, e que os sacerdotes culpados não estavam sujeitos ao rito da reconciliação.
c) Os Padres indicam um número considerável de meios pelos quais os pecadores podem obter a remissão de seus pecados; nenhuma alusão ao poder das chaves; portanto, a absolvição sacerdotal não estava em uso na Igreja primitiva.
d) As orações sacerdotais pronunciadas sobre os penitentes eram atos de pura intercessão; as fórmulas o atestam, e os escolásticos, São Tomás à frente, e mesmo os Pais do Concílio de Trento, deveriam reconhecer isso, uma vez que essas fórmulas eram puramente depreciativas e que, segundo a doutrina católica, a fórmula da absolvição, para ser válida e eficaz, deve ser claramente indicativa.
II. DISCUSSÃO.
Examinemos o valor de cada uma dessas assertivas:
É verdade que não se encontra nos primeiros séculos nenhum testemunho a favor do poder das chaves?
No início do século III, pelo menos, esses testemunhos são encontrados em Roma, Alexandria e na Igreja da África. Vimos que o papa Calixto, ao grande escândalo de Tertuliano, reivindicava o direito de absolver os adúlteros. Por volta da mesma época, talvez um pouco depois, os Cânones de Hipólito mencionam uma fórmula de consagração episcopal que faz alusão ao “poder de ligar e desatar,” que o Salvador deu aos seus apóstolos e, por conseguinte, aos bispos. A mesma fórmula de consagração se aplica à ordenação dos simples sacerdotes. A luta que se trava entre o papa Cornélio e os novacianos, que é inicialmente puramente disciplinar em aparência, implica um princípio dogmático, a saber, que os bispos têm o poder de remeter os pecados, mesmo os mais graves. Em Alexandria, Clemente nos dá apenas informações um pouco vagas sobre “a língua da penitência,” mas com Orígenes torna-se claro que certos pecados são perdoados pelos sacerdotes ou pelos bispos. O grande doutor estabelece de fato uma classe de pecados irreconciliáveis; mas ele reconhece que outros não compartilham sua opinião e perdoam todos os pecados, quaisquer que sejam a gravidade. De oratione, 28. Tertuliano compartilha a opinião de Orígenes sobre a natureza de certos pecados, que ele declara irreconciliáveis, exceto por Deus. Mas ele admite que outros pecados, mesmo canônicos, ou seja, sujeitos à penitência eclesiástica, podem ser perdoados pelo bispo. E se ele acusa os “psíquicos,” o bispo de Roma em particular, de usurpar o direito de Deus, “de usurpar,” ele reconhece, ao menos, que os bispos católicos se arrogavam o poder de absolver, e de absolver até os pecados mais graves. Para todos esses pontos, remetemos aos textos citados no artigo Absolvição no Tempo dos Padres da Igreja, col. 145 sq., textos que o Sr. Lea conhece muito bem, mas aos quais ele atribui pouca ou nenhuma importância. A respeito de Orígenes, por exemplo, ele se agrada em citar uma passagem segundo a qual o poder episcopal de ligar e desatar seria contestado: “É ridículo, diz Orígenes, pensar que um homem que está ele mesmo atado por seus pecados e que carrega a longa corrente de suas iniquidades, só pelo fato de ser bispo, tenha tal poder, que o que ele desatar na terra seja desatado no céu, e o que ele ligar na terra seja ligado no céu.” Comentário a Mateus, tomo XII, c. XIV, P. G., t. XIII, col. 1013. O Sr. Lea deveria perceber que Orígenes não nega de forma alguma, nesse texto, o poder de absolver, mas o subordina, com razão ou não, à santidade do ministro. Não há contradição entre essa passagem e o texto do De oratione. Em todo caso, era dever de um historiador imparcial tentar conciliá-los e explicá-los um pelo outro.
Mesmo defeito de método no Sr. Lea, a respeito da doutrina penitencial de São Cipriano. Cipriano, como vimos, ensina que “a remissão dos pecados concedida pelos sacerdotes é,” em certas circunstâncias, “ratificada por Deus,” dum remissio facta per sacerdotes apud Dominum grata est. Para enfraquecer a força desse texto e torná-lo ilusório, o Sr. Lea apresenta outras citações que parecem contradizê-lo: “Que ninguém se engane, que ninguém se faça ilusão, Deus sozinho pode perdoar, Ele é o único que pode conceder o perdão dos pecados cometidos contra Ele, que levou nossos pecados, que sofreu por nossos pecados, e que Deus entregou por nossos pecados.” De lapsis, c. XVII, P. L., t. IV, col. 480. Não há nada aí que seja incompatível com a doutrina católica do poder das chaves. Mais uma vez, é a graça de Deus, é Jesus Cristo que apaga os pecados; o sacerdote ou o bispo é apenas o ministro do sacramento. Assim, estamos surpresos que o Sr. Lea nos objetive o texto seguinte: “Deus pode conceder a indulgência (o perdão dos pecados), Ele pode ter por aceitável, potest in acceptum referre, o que os mártires pediram pelos pecadores e o que os sacerdotes fizeram por eles,” quidquid pro talibus et petierint martyres et fecerint sacerdotes. De lapsis, c. XXXVI, loc. cit., col. 494. Observe a diferença que este texto marca expressamente entre a “petição” dos mártires e o “ato” dos sacerdotes na reconciliação que Deus às vezes ratifica, potest in acceptum refere, em razão das disposições do penitente. Seria necessário seguir o Sr. Lea na interpretação que ele dá dos Padres do século IV para mostrar quão insustentável é sua teoria.
Mas, nesta data, os textos são de uma clareza ofuscante. Remetemos o leitor ao artigo Absolvição no Tempo dos Padres da Igreja. Apenas lembraremos dos textos de Socrates e Sozômenes que testemunham a existência do sacerdote penitenciário em Constantinopla e na maioria das igrejas, desde o tempo de Décio, segundo um, e ainda mais antigo segundo o outro, ab initio. Observemos que o sacerdote penitenciário absolvia os pecadores (mesmo antes de os classificar como penitentes). Essa observação tem uma importância sobre a qual teremos a oportunidade de voltar mais adiante. Sei bem que todos esses textos são um pouco tardios. O século I não oferece tantos testemunhos característicos. Contudo, Santo Inácio de Antioquia, quase contemporâneo de São João, atesta que os penitentes obtêm de Deus o perdão de suas faltas, “se recorrerem à unidade da Igreja e ao consentimento do bispo.” Segundo o Pastor de Hermas, a questão da eficácia de uma segunda penitência após o batismo era debatida em Roma entre os doutores. Hermas aprende por uma revelação divina que, em virtude de um favor especial, os pecadores poderão, dentro de um prazo determinado, fazer uma segunda penitência tão eficaz quanto a primeira. Mas o livro em que é consignada essa boa nova não é destinado aos doutores. Hermas é encarregado de comunicá-lo aos sacerdotes que estão à frente da Igreja. Tal recomendação não demonstra a existência na época (cerca de 150) de uma disciplina penitencial cuja direção estava a cargo dos sacerdotes? Mandat., IV, 1, 3, 4; Similitud., VIII 6, 11, em Hilgenfeld, Novum Testamentum extra canonem receptum, Leipzig, 1884, p. 39-42, 100 sq. A mesma disciplina em Alexandria, segundo os Stromata de Clemente, como vimos. De tudo isso, sem dúvida, não resulta evidentemente que os bispos e sacerdotes usavam o poder das chaves. Mas resulta que eles exerciam uma autoridade, mal definida para nós, sobre os penitentes.
De que natureza era essa autoridade? Se compararmos, de um lado, o texto de São João, xx, 23, e, de outro, os textos e a prática do século III, vemos que há entre eles uma relação de causa e efeito: vê-se que muitos bispos do século III, talvez todos (exceto os hereges), admitiam em princípio o poder de ligar e desatar, o poder de absolver, tanto nos bispos quanto nos sacerdotes. Devemos admitir, segundo nós, que essa doutrina provinha diretamente do ensino evangélico, através do século II. Se a doutrina penitencial do século III não é clara por si mesma, deve ser esclarecida pelo que a precede e pelo que a sucede: o que precede é São João e São Mateus; o que sucede é o papa Calixto e a condenação dos montanistas e dos novacianos. O Sr. Lea afirma que, “se o poder das chaves foi concedido aos apóstolos, ele expirou com eles, e que o exercício desse poder por seus sucessores é o mais audacioso non sequitur da história.” Nada é menos científico do que uma tal afirmação. Não há hiato na história; não há efeito sem causa próxima e sem causa distante. A causa distante do exercício do poder das chaves no século III é o texto de São João; a causa próxima não pode ser senão a disciplina penitencial do século I. Essa explicação simples não é mais rigorosamente científica do que um alegado non sequitur da história? Assim, seria temerário afirmar que houve um tempo, um século, em que o poder de ligar e desatar era desconhecido na Igreja.
É verdade que a reconciliação dos penitentes tinha efeito apenas no foro exterior?
Pode-se admitir isso de maneira geral, mas vimos (no artigo Absolvição no Tempo dos Padres da Igreja, col. 157) que essa regra admitia exceções. Se a doutrina dos Padres não é clara sobre essa questão, é porque os diversos elementos que constituem as partes essenciais da penitência ainda não haviam sido analisados e determinados pelos teóricos do sacramento. Além disso, pode-se admitir que, a partir do momento em que prevaleceu o regime do sacerdote penitenciário, a absolvição era dada por ele aos pecadores, antes mesmo de serem classificados como penitentes. Isso é ensinado expressamente por Sozômenes. E esse regime remonta a um período muito antigo na Igreja. Mesmo onde não estava em vigor, o que nos impede de acreditar que a oração pronunciada pelo bispo sobre o pecador, no momento de sua admissão à penitência, não era uma verdadeira absolvição, semelhante àquela dada pelo sacerdote penitenciário? Não é natural pensar que o penitenciário, ao absolver os pecadores que se confessavam a ele, não fazia mais do que seguir o exemplo dos bispos que até então haviam desempenhado sozinhos todo o ofício de diretores da penitência? Nesta hipótese, se fundamentada nos textos, que importa se a reconciliação final era apenas uma simples reconciliação no foro exterior! Não admitiremos mesmo que, em certa medida, essa teoria exclusiva do Sr. Lea. Com Palmieri, estimamos que a reconciliação final, quando não era uma verdadeira absolvição da culpa, era uma absolvição da pena, como dizem os escolásticos, ao mesmo tempo em que uma reconciliação com a Igreja no foro exterior. VerAbsolvição no Tempo dos Padres da Igreja, col. 160. Aceita essa explicação, não se pode mais nos objetar a reconciliação realizada pelos diáconos. Quando os diáconos, em Cartago ou em outros lugares, realizavam a reconciliação dos penitentes, na ausência do bispo e dos sacerdotes, é certo que não davam a absolvição; seu ato tinha efeito apenas no foro exterior. Pouco importa mesmo que tenham usado o rito de imposição das mãos. Esse rito não tinha por si mesmo nenhuma virtude sacramental. Nunca fez parte essencial do que mais tarde foi chamado a forma da absolvição. O Sr. Lea observa, além disso, que os sacerdotes culpados de pecados graves não eram admitidos à penitência pública e não eram reconciliados pela imposição das mãos; daí ele conclui que não havia para eles absolvição; o que provaria que os pecados eram remidos na Igreja primitiva sem nenhuma intervenção do poder sacerdotal. Há nessa teoria certa confusão. É verdade que um concílio africano de 419, c. 27, Hardouin, Concil., t. 1, col. 878, ordena que os sacerdotes e diáconos em caso de falta grave sejam depostos e proíbe que lhes seja imposta as mãos como aos leigos para a penitência. O papa São Leão, Epist., CLXVII, n. 2, P. L., t. LIV, col. 1203, declara que esse tratamento se baseia, sem dúvida, na tradição apostólica. Essa afirmação é dificilmente aceitável. Nos três primeiros séculos, os clérigos eram submetidos à penitência como os leigos, pelo menos em certas regiões. Aprendemos com São Cipriano que os bispos faziam penitência, Epist., LII, n. 8; XLVII, n. 7, e que, na época dele, o dever da penitência incumbia especialmente aos clérigos que haviam caído. Epist., LXIV, LXV. O concílio de Elvira (300) condenou os clérigos tanto quanto os leigos à penitência ou à excomunhão perpétua, cân. 18, 76; o concílio de Néocésaréia (314) agiu da mesma forma, cân. 1. Não pode, portanto, haver dúvida de que, em princípio, os clérigos estavam sujeitos ao mesmo regime penitencial que os leigos. Para esse período, a objeção do Sr. Lea é, portanto, sem fundamento. Quando o regime, do qual testemunham São Leão e o concílio de 419, estava em vigor, é verdade que não havia absolvição para os sacerdotes, sob o pretexto de que não eram reconciliados pela imposição das mãos? Essa consequência não é rigorosa. Já vimos que os leigos recebiam a absolvição antes de serem classificados como penitentes públicos. Os sacerdotes eram dispensados da penitência pública propriamente dita; mas com que direito se afirma que não recebiam a absolvição do bispo após a confissão de suas faltas, como a recebiam os leigos?
É verdade que os Padres recomendam vários meios próprios para apagar os pecados, sem recorrer de modo algum à absolvição sacerdotal, como afirma o Sr. Lea em um capítulo intitulado The Pardon of Sin?
É aqui que se revela, em toda a sua gravidade, o erro do crítico sapiente. Ele não considerou que é necessário fazer uma distinção entre os pecados que os teólogos chamam de matéria necessária e aqueles que chamam de matéria facultativa da absolvição. Toda a sua argumentação gira em torno de uma ambiguidade. Sem dúvida, Orígenes, Santo Agostinho, Santo Ambrósio, Santo Cesário e muitos outros ensinam que os pecados podem ser remidos pela esmola, pelo perdão das ofensas, pela caridade, pelas lágrimas, pela confissão a Deus, pela fé, pelas boas obras, pela oração, em uma palavra, por todo ato sobrenatural que tenha uma virtude expiatória. Mas de que natureza são os pecados assim remidos? São os pecados que eu chamaria penitenciais, os pecados que os Padres e os doutores citados consideravam como mortais ou capitais (capitalia), isto é, como matéria necessária da penitência pública? Pode-se desafiar o Sr. Lea a provar isso. Ora, eram esses últimos que constituíam a matéria da absolvição. O Sr. Lea parece reconhecer isso para Santo Ambrósio: “Ambrósio, diz ele, não admite outra penitência senão a penitência pública para os pecados graves; os pecados veniais, nos quais caímos inevitavelmente todos os dias, são perdoados pelo arrependimento: e não há, entre essas duas classes de pecados, uma classe intermediária.” Lea, t. 1, p. 479. Santo Agostinho, Santo Paciano, Santo Cesário e outros ensinam a mesma doutrina. Agostinho, por exemplo, escreve: “Não cometam os pecados pelos quais é necessário que se separem do corpo de Cristo. Aqueles que vocês veem fazer penitência cometeram crimes tais como adultério ou outras faltas extremamente graves, facta immania; é por isso que fazem penitência. Pois se seus pecados fossem leves, a oração diária (a oração dominical) seria suficiente para apagá-los.” De symbolo ad catechum., c. VII, P. L., t. XL, col. 636. Deve-se reconhecer, na verdade, que, na distinção entre pecados mortais e pecados veniais, entre peccata capitalia e peccata minuta, a classificação dos Padres não é sempre absolutamente sobreponível, como se diz hoje, à dos casuístas modernos. Tal ato, qualificado agora como falta grave, pode não ter sido visto assim por Santo Agostinho ou Santo Paciano. Agostinho entende por pecados penitenciais, e portanto sujeitos ao poder das chaves, “aqueles que abrangem o decálogo da lei e dos quais o apóstolo disse: Quem os comete não possuirá o reino dos céus,” quae decalogus legis continet et de quibus apostolus ait: Quoniam qui talia agunt regnum Dei non possidebunt. Serm., CCCLI (duvidoso), De paenit., c. VII, P. L., t. XXXIX, col. 1542. Esse texto não é muito preciso. Santo Paciano parece ensinar que os únicos pecados que são matéria necessária da penitência pública e da absolvição sacerdotal são os três pecados de idolatria, fornicação e homicídio. Paraens., ad penitent., c. VII, P. L., t. XIII, col. 1084. Mas não se deve ver nessas classificações mais do que uma questão de apreciação pessoal, independente do princípio mesmo que regia a disciplina penitencial. Todo pecado considerado grave era passível do poder das chaves, e os pecados que os culpados poderiam expiar sem recorrer à penitência pública e à absolvição sacerdotal eram peccata minuta. É permitido surpreender-se que o Sr. Lea não tenha percebido essa distinção crucial que derruba não apenas seu sexto capítulo, mas também uma grande parte das teses sustentadas em seu primeiro volume.
O argumento que o Sr. Lea baseia no caráter puramente depreciativo das fórmulas de absolvição sacerdotal durante os dez ou doze primeiros séculos, para culpar a Igreja Católica, é mais convincente?
Não é. Parece-nos incontestável que os primeiros séculos, de fato, não conheceram a forma indicativa da absolvição. Mas vimos que, durante esse período, os Padres entendiam bem que o perdão dos pecados era concedido aos penitentes em virtude da fórmula usada em seu tempo, isto é, uma fórmula depreciativa, supplicatione sacerdotali, como diz Santo Leão I. O P. Palmieri observa justamente que uma sentença de um tom depreciativo possui às vezes uma força equivalente à de um tom indicativo. Pode-se rezar a Deus de duas maneiras: pode-se dirigir a ele uma simples súplica, em vista de uma graça a obter; mas também se pode pedir essa graça em virtude da autoridade que se tem, ou do ministério que se exerce. Este é o caso da absolvição sacerdotal. Quer ordene ou que reze, o sacerdote, quando pronuncia a sentença, ou, se preferir, o pedido de perdão, fala como quem possui a autoridade; ele fala em virtude de um poder que Deus mesmo lhe delegou; sua oração não é apenas depreciativa, é potestativa. Se essa sentença assume a forma de uma súplica, é para atestar que a graça provém de Deus primariamente e principalmente, como diz João o Presbítero (ou seu pseudônimo), Morin, De sacrament. paenit., apêndice, p. 77, mas ainda assim, devido à promessa divina, ela tem por si mesma, vista a promessa divina, sua eficácia sacramental. E não há motivo para se enganar sobre o sentido que os ministros da penitência (pelo menos a partir de uma certa época) atribuíram, uma vez que eles alegavam, para justificar o exercício de sua autoridade sacerdotal, a promessa evangélica do poder das chaves. Mais tarde, a menção expressa dessa delegação foi até mesmo introduzida na fórmula da absolvição. Finalmente, a fórmula tornou-se indicativa. Veja Absolvição na Igreja Latina entre os séculos VII e XII, col. 167. Essa explicação, eu sei, não teria satisfeito Santo Tomás, que ensina que, para ser válida, a fórmula sacramental da absolvição deve ser indicativa. O Concílio de Trento deu uma espécie de consagração à opinião de Santo Tomás, ao declarar que as palavras Ego te absolvo são a única parte essencial da forma do sacramento da penitência. O Sr. Lea triunfa dessa decisão, e exclama com um ar ao mesmo tempo indignado e irônico: “Assim, sem essas palavras Ego te absolvo, a absolvição é nula; o concílio, sem saber, proclama para o mundo inteiro que antes do meio do século XIII uma Igreja infalível nunca havia administrado a seus filhos uma absolvição válida, embora essa absolvição fosse indispensável para sua salvação.” Lea, op. cit., t. 1, p. 488. Aqui novamente o crítico erudito engana-se gravemente. Que o uso da fórmula Ego te absolvo tenha se tornado obrigatório na Igreja latina é incontestável: é uma necessidade de preceito, como dizem os teólogos. Mas que sem essas mesmas palavras toda absolvição seja nula, isso é impreciso: o uso da fórmula não é de necessidade de meio, como dizem os escolásticos. O Concílio de Trento resolveu uma questão, tanto disciplinar quanto dogmática; o caráter dogmático do decreto não proíbe pensar que toda outra fórmula, equivalente à que ele prescreveu, pode ter a mesma eficácia sacramental. Não se tem o direito de dizer que ele declarou nulas as fórmulas depreciativas usadas nos séculos anteriores. Isso é tão verdade que Clemente VIII não achou necessário condenar o uso da fórmula empregada pelos gregos. Admira-se que esse fato não tenha aberto os olhos do Sr. Lea, que o relata com o objetivo visível de colocar a Igreja Romana em contradição consigo mesma. Sabe-se que a Santa Sé tinha, no século XVI, sob sua obediência, algumas centenas de paróquias de católicos gregos, no sul da Itália; o rito grego era observado lá, com a fórmula puramente depreciativa da absolvição.
Assim, em 1595, Clemente VIII permitiu aos padres gregos dessa região absolver os latinos, com a condição de que utilizassem a fórmula prescrita pelo concílio de Florença, à qual poderiam adicionar, se assim desejassem, sua própria fórmula litúrgica. “O papa,” observa o Sr. Lea, “não parece ter percebido que estava se colocando em uma situação ligeiramente absurda, ao deixar crer que um grego poderia ser salvo por uma absolvição depreciativa, enquanto para um latino, a absolvição indicativa era necessária.” Clemente VIII, decreto de 31 de agosto de 1595, Bullarium, t. III, p. 52; Lea, op. cit., t. 1, p. 489. A má posição que o Sr. Lea atribui ao supremo pontífice é puramente imaginária. Para entender a conduta de Clemente VIII, basta saber que, sendo a fórmula depreciativa suficiente para a validade da absolvição, a Igreja ou seu chefe pode, quando achar conveniente, tolerar seu uso. Explicaremos mais detalhadamente em um artigo subsequente, Absolvição nas Suas Formas Deprecativas, as razões do decreto de Clemente VIII, col. 252, assim como o sentido do decreto do concílio de Trento, col. 244 e seguintes. Mas já podemos concluir que as críticas que o Sr. Lea levanta contra a doutrina católica da absolvição não resistem ao exame de uma crítica imparcial.
Ref: Henry Charles Lea, A History of Auricular Confession and Indulgences in the Latin Church, 3 in-8°, Londres, Swan Sonnenschein, 1896; especialmente c. II: Discipline; c. III: Public Penance; c. IV: Réconciliation; c. VI: The Pardon of Sin; c. VII: The Power of the Keys; c. XIV: Absolution; Funk, artigo Busdisciplin, no Kirchenlexikon de Wetzer e Welte, t. II, col. 1568, sobre a penitência dos clérigos; Palmieri, Tractatus de penitentià, Prato, 1896, Parergon de forma deprecativa, p. 143-157; Vacandard, Le Pouvoir des Clés et la Confession Sacramentelle, sobre o livro do Sr. Lea, na Revue du Clergé Français, edições de 1° de abril, 1° de maio, 1° de julho, 1° de setembro, 1° de novembro de 1898, 1° de fevereiro, 15 de março de 1899; Boudinhon, Sur l'Histoire de la Pénitence & propos d'un ouvrage récent, na Revue d'Histoire et de Littérature Religieuses, t. II, p. 306 e seguintes, 496 e seguintes; Manuel Dohl, Étude sur M. Lea, na Revue Critique d'Histoire et de Littérature, ano 1898, n. 45.
E. VACANDARD.